“Vai ter treta? Não.” — Um debate sobre comunidade de jogos, política, colonialidade e design de jogos narrativos.
Estava refletindo sobre algumas situações que rolaram em mesas de Herdeiros dos Antigos e que se relacionam com conversas que tive com o professor Luciano Jorge de Jesus. E, nalguma medida, estas situações regressaram na live que ele conduziu sobre o evento RPG de Preto no canal Jogos e Quilombagens.
Um dos pontos mais delicados do design do RPG Herdeiros dos Antigos foi remover as soluções binárias de problemas e inserir conflitos internos aos grupos de protagonistas. Várias cenas que rolam, sobretudo nos Modos Alternância e Partilha, são geradas por conflitos internos, entre o grupo de Herdeiros, pessoas subalternizadas que não visam “sobreviver”, mas viver em plenitude. Não é um jogo para vitimar as margens sociais, pelo contrário.
Ocorre que, vez por outra, a gente idealiza as pertenças, os coletivos diversos e até mesmo aliados. Idealiza considerando que não há disputas, tensões, negociações e até mesmo conflitos internos. Sabe aquele papo de “party heroica” de jogos? Todos na mesma página, concordando sempre e superando (passando por cima) de quem os opõe? Pois é, além de ser algo um tanto forçado (preguiçoso talvez?) faz com que os processos de convivência e luta sejam idealizados a ponto de serem quase apolíticos (se é que isso é possível).
Em Herdeiros dos Antigos eu busquei inserir ao conceito de horror social as tensões que rolam dentro dos grupos de protagonistas, sendo que os jogadores precisam gerir esses conflitos. Não há qualquer problema em lidar com isso. Pelo contrário, as disputas, negociações e argumentações são parte da agência política. E, inclusive, este tipo de debate ajuda a desenvolver personagens, mobilizar conflitos complexos, etc.
Na partida que rolou recentemente, Renata, Jefferson e Luiz protagonizaram uma série de conflitos internos sem “tretar”. Disputaram, bateram de frente. Também houve relações com coadjuvantes sem isentar o enfrentamento. Porém, em ambos os casos, o caminho não foi aniquilar, sobrepujar o outro, mas o “superar o conflito” foi lido de forma coerente como uma disputa pelo convencimento, pela argumentação, pelo “jogo político” (não que a violência não seja uma expressão política, o que precisa também ser tratado, algo que posso revisitar em outras circunstâncias, mas meu jogo Déloyal ajuda a pensar nas instâncias de sublevação popular como algo importante para as dinâmicas sociais). E esta disputa franca no campo das ideias e corporalidades não foi uma exceção. Rolaram na mesa de Herdeiros no Jacafreak, na Ordem do Dado, no Movimento RPG e em tantas, mas tantas partidas, que certamente estou esquecendo de algum.
Uma das torções que Herdeiros dos Antigos à tradição de jogos e narrativas é, para além da fuga da estrutura de vitimização de minorias (fetiche pelo sofrimento/superação) mobilizar as instâncias de conflito para as diferentes pertenças interseccionais. Ou seja, é um jogo de horror social (não apenas pessoal), logo, as diversas coletividades também são fontes de tensão. A questão foi como levar a proposta ao jogo sem incorrer na mera subjetividade.
Quando eu reescrevi duas vezes todas as jogadas (movimentos) de forma a retirar a ideia de “vencer o conflito” e modifiquei a estrutura de relógios de frentes/facções/conflitos de Herdeiros dos Antigos, usando a solução da Reserva de Caos (que é subtraída a despeito do resultado 6- em jogadas), cheguei a uma solução simples que orientou o jogo a algo para além do “superar”. Taí um exemplo de mecânicas que tomou muito tempo e que mexe com a forma de jogar.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Luciano, com toda a situação em torno do RPG de Preto e, para além, de uma série de questões sobre pessoas diversas produzindo qualquer conteúdo? Muita, mas muita coisa.
Não é raro ver a galera chegando “pra comer pipoca e ver a treta”, gente que fica toda animada quando tem “confusão”. A polêmica rende likes, muita gente considera tudo espetacular e quer que rolem ações violentas, ofensas, agressões (me recuso a utilizar o termo cancelamento pois ele ameniza o que ocorre nas redes, e fora delas). Mas se a gente compra essa narrativa conflituosa, está a serviço do “Culto da Normalidade”, a facção antagônica não-personalista, mas representando a ideologia dominante e normalizadora em Herdeiros dos Antigos.
Já conversei com o Luciano inúmeras vezes como parece estranho que duas pessoas pretas, por exemplo, não concordem com algo ao olhar externo. Até mesmo pessoas aliadas querem que você polarize, seja A ou B em determinadas circunstâncias que fazem parte da disputa por ideias. Não há qualquer problema em discordar, de buscar a conversa, de restituir a complexidade dos debates (como sempre apontado pelo professor Silvio Almeida).
Lembro de textos e falas do professor Renato Noguera que sempre destaca a não homogeneidade e a presença de conflitos como uma leitura da ética ubuntu, algo que normalmente é romanceado como uma suposta paz pós-política. E é nesse corre que o Luciano convida às interlocuções instigantes.
Isso não significa que a gente tem de abaixar a cabeça e conversar com qualquer pessoa a qualquer momento. Há uma série de questões que são inadmissíveis. Por outro lado, quando a gente não senta e debate, chega junto e conversa, troca ideia mesmo, constrói. O lance é justamente esse. Não se isentar do debate, mas não pensar no outro, sobretudo os nossos, como um “inimigo”. Essa vontade de aniquilar é parte da colonialidade. E quando a gente não “chama no canto e manda a real de boas, sem ser na voadora”, tá alimentando o que quer realmente nos aniquilar.
Lembro de todas as vezes que Thiago Rosa, Luciano Jorge, Prissilla Souza, Lisa Yurika, e tantas pessoas chegaram junto e deram um toques bacanas, seja advertindo sobre pessoas complicadas, revisando falas e textos, etc. E é tudo isso que vai cultivando (de cultura/cultivo/criação) minhas sensibilidades, afetos e intencionalidades quando escrevo.
Como dito na live que rolou, estamos em processo. Reitero, o lance não é dar palco pra quem “quer ver a treta rolar” ou joga veneno na cara dura. E quando a gente compra uma estrutura colonizada que quer “tratorar o outro”, a gente pode até ganhar visibilidade (dada a estrutura de redes sociais), mas tá longe de manifestar a nossa Herança, nos termos de Herdeiros dos Antigos, ou Quilombagens como no canal do professor Luciano.
Por tudo isso, chamar pra trocação de ideias e debater com argumentos, tecendo críticas sem detonar o outro, é fundamental. Esse papo de aceleração, conflito, superação e violência vai manter a gente no moedor de carne. E isso interessa a “alguéns”. Ô, se interessa. Já diria B Negão: O processo é lento. E essa lentidão é um elogio, acredite. É estratégia. E pra quem tá nessa margem do rio, sem estratégia a gente continua morrendo.
Sobre Herdeiros dos Antigos: catarse.me/herdeiros
Sobre o canal Jogos e Quilombagens: twitch.tv/jogosequilombagens