Uma conversa sobre divulgação científica em história
Ouvi, após inúmeras indicações, o programa sobre história e cinema do maior podcast do Brasil. Penso que várias questões podem ser trabalhadas tomando o programa como objeto.
Enquanto entusiasta da divulgação científica, iniciei a escuta de forma aberta e generosa. Não sou ouvinte deste programa, mas observei o formato comum em outros podcasts.
Uma bancada composta por anfitriões e especialistas historiadores. Uma vinheta com apresentações e chamadas "de impacto". E já há algo por aqui.
A fala "vamos acabar com os filmes que você gosta" possui uma série de implicações muito complicadas. E nem a própria reflexão da inserção dos filmes e do podcast no campo da história pública foi comentado.
Mas cabe destacar o corpus, os objetos, os filmes escolhidos. A seleção dos documentos já é parte da construção da narrativa. E essa escolha reitera uma história bem conhecida: a perigosa história única.
Alguns filmes e séries comentados: Coração Valente, o Resgate do Soldado Ryan, Band of Brothers, o Último Samurai, Vikings, Gladiador, Cruzada.
A ausência de filmes asiáticos, latinosmericanos e africanos. A ausência de narrativas não-bélicas. A ausência de vozes, cores, gêneros distintos. Ausências constroem narrativas. Meu olhar se volta à bancada. Giro o pescoço e olho ao redor. Prossigo.
Durante o programa, tal qual um gabinete de curiosidades, os filmes foram postos "lado a lado com a verdade dos fatos" (?) e a conversa serviu a validar ou não uma suposta intenção reconstrutiva dos eventos históricos.
Há parcos comentários sobre a intervenção do diretor, há vários debates "pra entreter x pra educar" que se afastam do que se produz academicamente sobre as interfaces entre cinema e história.
Numa abordagem simples de um ensaio de história social da cultura, qualquer um dos filmes deveria ser analisado enquanto produção cultural de seu tempo.
Não se falou do contexto de produção dos filmes, sua recepção e diálogos com outras produções artísticas, por exemplo. E isso poderia ser feito explicando a importância da conjuntura, da criação da ficha fílmica e do ofício do historiador.
E aí entra algo bem complicado. A própria história se encontra no domínio público. Deste modo, fazer divulgação científica em história é também se preocupar com a metodologia da história e com teoria da história.
Não indicar as distintas correntes, um referencial teórico qualquer (nem mesmo Marc Ferro foi citado) gera a impressão que o historiador é um sabichão que julga o "certo" ou o "errado".
Por vezes o podcast deu a ênfase da compreensão do passado por meio de narrativas personalistas de grandes nomes, datas e eventos. Tudo um tanto acrítico, cabendo à banca elogiar ou "detonar" as obras.
Há uma série de "coisas certas ou erradas" que se adequam às escolhas do diretor, que lidam com o contexto histórico, por exemplo. Mas ainda é preciso ir além: a linguagem cinematográfica também não foi analisada.
Houve apenas um comentário sobre a trilha sonora de um filme (também seguindo o binarismo bom ou ruim). Fotografia ou montagem, por exemplo, não foram analisados, bem como o elenco escolhido.
Mas uma imagem ainda me foi a mais forte, impactante e complicada, aguda no final do podcast. Foi quando tratavam o filme Cruzada, que foi considerado por 1 na bancada como um bom filme.
Merece atenção os argumentos para que ele seja tomado como um bom filme e as críticas da bancada, que acharam-no arrastado e pretensamente sem ação.
Um dos participantes inclusive afirmou que Cruzada é a prova de um filme que pode ser bom em história e ruim como filme, faltando qualificar bom e ruim e analisar o que a narrativa do filme (das 2 versões) propunha. Mas voltemos à imagem impactante.
Um participante comentou que a melhor cena, a imagem mais bela de todo o filme foi a marcha dos guerreiros cristãos cruzados. Outro destacou a beleza da cruz tremulando na bandeira dos cruzados.
Esta foi a imagem, a melhor imagem de um filme considerado "chato" por 4 na bancada. Esta imagem fala muito sobre nossos tempos, sobre a recepção do podcast e sobre outras questões também.
De certo somente este podcast seria um excelente tema para estudo. Por isso o utilizarei criticamente em minhas aulas e seguirei compartilhando outras iniciativas de divulgação de história.