Um jogo silencioso e emocionante

Jorge dos Santos Valpaços
3 min readAug 5, 2019

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Quando criança, brincava de andar na rua de olhos fechados. Jogava sozinho um jogo silencioso e emocionante. Quantos passos eu daria sem ver nada adiante? O que deixaria de notar no caminho? Que sons me surpreenderiam com mais atenção a este sentido? As dúvidas traçaram meus caminhos de ida e volta para a escola, mercadinho, e tantos trechos do bairro foram mapeados em minha mente, mas eram mapas incríveis, feitos pela renomada cartógrafa Rafaela Gusmão. Ops. Vez por outra encaixava meu pé na mesma pegada esculpida em cimento fresco da semana passada.

Há poucos dias conversei com um amigo sobre o ato de jogar sozinho. Ele, professor, mostrou-me páginas do livro didático dedicadas a jogos e brincadeiras numa abordagem positiva, instigante, ainda que não potencialmente explorada. Conversa boa decanta, mistura, é parte de uma alquimia. Ontem à noite, quando filtrava o extrato do “que está rolando”, notei que percepção cisma, vai e volta como esse cabelo branco que brilha em sol envergonhado de inverno: ainda em jogos coletivos, há diferentes camadas, jogos individuais.

Quando criança, brincava de andar na rua de olhos fechados. Jogava sozinho um jogo silencioso e emocionante. O coração acelerava e, neste andar, criava outros mundos. Ainda que parte da minha atenção estivesse em não tropeçar em qualquer coisa, aproveitava a des/reconexão para explorar em detalhes os mundos que inventava. Então, quando fechava os olhos, começava a explorar o meu jogo de mundo aberto que criei em mil-novecentos-e-nem-pense-em-Minecraft. Criava regras, jogos menores, relações entre o trajeto, sons e odores com o jogo dos olhos fechados. Mas eu tinha um medo que descobrissem que fazia isso…

Tenho andado e criado mundos ficcionais. Nestes últimos anos eu tenho criado emuladores do jogo de andar de olho fechado. Mas só há pouco, revisitei histórias antigas. Não as minhas, mas de tudo aquilo que não fui e justamente por isso fazem ser quem sou. Os passos dados no mundo dos olhos fechados e o batimento acelerado no mundo inventado fazem parte de algo prazeroso que descobri errando por aí. E essa interação física, corporal, sentimental e vertiginosa entre duas instâncias de existência e expressão fazem parte de muito do que faço hoje.

Quando criança, brincava de andar na rua de olhos fechados. Jogava sozinho um jogo silencioso e emocionante. Ao fechar os olhos ignorava magicamente os cães que farejavam meu medo. Desvia os sacos plástico com parte de gente morta, o sangue que escorria na caçamba de lixo. Também era o melhor jogador de futsal do colégio, e até mesmo dava aulas com a turma super empolgada. De olhos fechados quebrei um dente, trinquei meus óculos, fui atropelado. Aprendi a viver na tensão entre olhos abertos e fechados.

Ouvi durante muito tempo de pessoas próximas que jogar de andar de olhos fechados era perda de tempo, algo menor. Todas as vezes que optei por continuar jogando de olhos fechados optei por caminhos emocionantes. Saí de uma ocupação formal. Mudei de casa. Comecei e terminei relacionamentos. Iniciei estudos. Caí e me machuquei inúmeras vezes. E vez por outra fico um tempo sem jogar esse jogo. É comum. Mas, de alguma forma, seria difícil não me enxergar de olhos fechados, rindo sozinho, explorando o solo debaixo do meu pé e sentindo o campinho atrás do pátio do Colégio Tamarindo, os altiplanos super tecnológicos, a caatinga rubra e até mesmo o vento no rosto sendo uma das aves da vizinhança.

Quando criança, brincava de andar na rua de olhos fechados. Jogava sozinho um jogo silencioso e emocionante. Porém, assim que abria os olhos, enxergava sempre um mundo diferente. E naquele momento turvo entre o abrir e o fechar de olhos, antes da imagem se formar ou da escuridão tomar a minha frente, podia notar com fascínio a magia atravessando os diferentes mundos. O livro que li, a música que ouvi, a conversa que tive. Essas magias-histórias fluíam e me alimentavam naquela vírgula de tempo entre os mundos. Muita força que tive para continuar andando, de olhos abertos ou fechados, veio desse alimento mágico.

Exploro jogos, jogos de vertigem, jogos que exploram a percepção (inclusive sobre jogos). Estudo o jogo entre mundos, entrelugares e metaficções. Tensiono a dialética ficcional em jogos e sinto o batimento acelerado dos olhos fechados perseguindo o impossível e experimentando o material. Talvez um caminho a seguir num mundo que se mostra cada vez mais difícil de enxergar seja ver também por meio do que se apresenta aos olhos fechados. Num jogo incerto onde não se sabe onde pisa, há espaço para inventar o ontem-agora-amanhã.

Quando criança, brincava de andar na rua de olhos fechados. Jogava sozinho um jogo silencioso e emocionante. Hoje, aprendi a dividir esse jogo. Aqui, inclusive.

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Jorge dos Santos Valpaços
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