Teocrasília volume 3
Já disse isso algumas vezes. Reitero: distopias não brilham pelo caráter premonitório, mas pela complexidade em desenvolver enredos ante o estreitamento do horizonte de expectativas.
Sigo na contramão de odes superficiais a histórias alternativas e cenários opressivos. Enquanto insistem "tá virando isso aí", "isso é muito <nome da obra>", aprecio distopias por sua coerência interna, e pelo tensionamento político que a linguagem propõe.
Talvez seja por isso que me afaste de muitas produções e de leituras que vibram numa frequência próxima a profecias autorrealizadas e sambe na roda de outros futuros possíveis.
Dito isso, a pedrada: Teocrasília 3. Um exemplo ímpar de como manter a chama narrativa em uma trama repleta de situações complexas e intrincadas.
Denis Mello apresenta o mais volume mais visceral de seu quadrinho sobre um futuro distópico, fascista e fundamentalista religioso brasileiro. E o faz com uma série de nuances.
A resistência à Ditadura da Palavra se radicaliza em resposta aos desmandos do regime, que institucionalizou campos de concentração, tortura e avança com o projeto sobre a pena de morte espetacular.
As referências à guerrilha do Araguaia são mais do que evidentes: contemplam a fusão de tempos (passado-futuro), gerando conexão e estranheza, proximidade e asco. E o treinamento das forças militares na "arte da tortura" (nas palavras de um antagonista) servem ao mesmo propósito. Os quadros e sarjetas arranham o olhar até que lágrimas escorram.
Denis propõe uma rima narrativa dialética. Ao entrecortar a narrativa do grupo da A.R.A. com o Campo de Reeducação e apresentar as trocas de informações, sempre tensas, entre os núcleos, ficamos grudados na história.
Merece atenção, porém, a ternura, o amor. Yuri não se desumanizou após sua jornada de vingança contra Os Cruzados. A nudez partilhada com o amigo-refém André é banho de intimidade, carinho e afetos.
E a recorrência de termos/atos de amor não é em vão. Inclusive em instâncias de perda, como no ato Chicletinho-Gaúcho 3 na solidariedade de classe do conto no fim do livro.
Sobre este conto, a "Fábrica" comandada por "Silas", a alegoria complexa ao regime laboral ostensivo edulcorado por ideologias meritocráticas e salvacionistas esviscera as contradições da materialidade do trabalho no Brasil. Nas mesmas páginas, coronelismo, escravidão, trabalho precarizado, prisões. Uma das sínteses mais complexas que poderiam ser feitas.
Destaco também a sagacidade de inserir conversas e memes de grupos de zap pra adensar a compreensão da mentalidade na distopia, bem como comentários nos jornais "Grande Estado" e "A Orbe". Tenho certeza que você já leu muitos como os que Denis escreveu.
Há detalhes metalinguísticos poderosos também. O fazer quadrinhos em tempos de "suposta neutralidade" ganha tinta. Fica o destaque para uma chamada de matéria no jornal que fala sobre quadrinhos conservadores (atenção ao "homenageado" ali) e para as capas de quadrinhos na prévia da próxima edição. Sim, o Vikringstão pode ser uma paródia engraçada. Mas há uns heróis brasileiros que não se distam tanto do Capitão Anauê...
Mas eu havia falado em uma narrativa não-fatalista. E é neste ponto que a leitura cautelosa e criteriosa de Teocrasília se destaca. Passar os olhos pelo quadrinho pode apresentar uma oposição violenta entre um grupo de resistência armada e uma ditadura. Mas não é isso que se desenvolve.
O descontentamento popular ante a crise, os espaços de gozo e prazer (bares, festas, ações culturais, praia, futebol), as mensagens "que precisam ser apagadas" e tantas outras expressões mostram a vida espreitando pelo concreto armado.
E é justo ali, nas fugas e associações populares que o nascedouro da plantinha rompe o solo. A vida acontece ao rachar lentamente as estruturas rígidas e opressivas.
E é desta forma que as lutas restituem o presentes e esticam futuros possíveis, gotejando esperanças em dribles cotidianos. E nós vamos em frente, na malandragem de André, agora Pedro, no covil do lobo, em Teocrasília 4.
Obs 1: Os dramas de um personagem haitiano me tocaram. Recordei de um personagem que escrevi para Herdeiros dos Antigos.
Obs 2: Vicky, heroína.
Teocrasília volume 3 é um dos melhores quadrinhos que li neste ano.