Sobre a terceira margem dos jogos
Mais uma partida da campanha de Lições. Entusiasmo geral, aventura preparada, tudo pronto. Uma das participantes terminou seu jantar. Aguardamos um pouco. Enfim, a conexão foi estabelecida e, em poucos minutos, já estávamos conversando.
Quase uma hora de conversa antecedeu a partida. Rimos, falamos de assuntos diversos. Nem todas as pessoas se conheciam previamente e, durante aquele papo, notamos não apenas o nosso entrosamento, mas como a conversa era agradável.
Passado algum tempo, a partida começou. Fizemos uma breve recapitulação, algo que sempre conduzo por meio de uma partilha narrativa. As personagens, já cientes da existência de um Outro Mundo, tinham de abrigar refugiados de uma guerra em segredo, uma vez que discursos militaristas e xenófobos cresciam em Seu Mundo de origem, aproveitando-se do temor ante os seres desconhecidos.
Neste momento houve um grande desgaste, já que a inconsistência da conexão fez com que eu ficasse inaudível por algumas vezes, sendo necessário repetir por algumas vezes e solicitar às demais que fizessem o mesmo. Por sorte, a instabilidade durou por menos de 20 minutos. Ainda assim, foi significativa.
As participantes estabeleceram um plano e começaram a agir para compri-lo. Elas buscaram informações acerca da conspiração que ocorria na academia onde estudavam e, em paralelo, garantiam abrigo aos seres refugiados. Algo interessante ocorreu, inclusive. Sem qualquer combinação prévia, houve uma divisão de tarefas, demonstrando confiança e laços que se desenvolviam entre as personagens, o que foi potencializado com a economia de Experiência e com o acionamento de Minúcias, sobretudo a Motivação e os Afetos das Protagonistas.
Entretanto, antes do Desfecho da partida, ou seja, no meio do cumprimento das Minúcias do Capítulo que foram criadas pelas personagens, uma das participantes precisou se ausentar. Isto seria considerado algo chato ou frustrante, mas foi considerado natural, sem problemas, normal. Combinamos que no prosseguimento da campanha seguiríamos daquele ponto, ninguém assumiria o controle da personagem e tudo bem.
Mas… Será que este tudo bem emergiria noutros contextos?
Revisito minha ludovivência e resgato memórias que me dizem que não. Possivelmente os problemas técnicos, a conversa prévia, a saída de uma participante ou mesmo o atraso ao conectar seriam considerados elementos geradores de conflito para as pessoas participantes. E sim, não apenas podem, mas são. Contudo, o estabelecimento de acordos prévios, convenções em torno da conduta e da segurança, algo que considero fundamental, mitigam muito isto, sobretudo ao colocar quem joga na “mesma página”, por assim dizer.
Ocorre que há questões — felizmente — turvas nesta equação. Não é o que é previamente acordado que sempre determina a tranquilidade ao lidar com eventos fora do controle, quebra de expectativas e frustrações durante o jogo. Note, tanto os problemas técnicos quanto a saída de uma participante não tratam da narrativa lúdica, mas do que está “além do círculo mágico” mas que possibilita/molda/constrói o “círculo mágico” (conceito em disputa, sendo criticável como qualquer conceito).
Não tenho dúvidas que aquela conversa amistosa prévia e o entrosamento social que acalmou nossas tensões pré-jogo foram fundamentais ao encarar os infortúnios da sessão, considerada extremamente positiva a todas participantes, a despeito dos sinistros. As escolhas e ações tomadas em jogo também foram fundamentais para tanto, uma vez que não apenas eu, o narrador, como todas as pessoas, abraçaram inúmeras sugestões e “tocaram a narrativa adiante”, apropriando-se das mecânicas de Lições para isso. E aqui preciso fazer um comentário mais extenso.
Um dos pontos que busquei desenvolver em Lições é o deslocamento da conformação das memórias das experiências de jogo das instâncias fora do padrão (normalmente associadas à aleatoriedade) e da conclusão climática das Histórias. O primeiro ponto foi atacado ao repensar o sentido das resoluções dos testes, fazendo com que a narrativa em si esteja em disputa a cada lance de dados. Além disso, as personagens efetivamente mudam a cada alteração de recursos que possuem. Em outros termos, a “ficha muda a cada momento”, o que faz com que o tempo de jogo seja mais intenso e significativo, apontando inclusive na mudança de planos ou de decisões prévias, em virtude da emergência de novas condições à personagem.
O segundo ponto foi o maior desafio, uma vez que o Sistema L’Aventure possui enquanto um dos elementos centrais a jogada climática que parametriza a continuidade da História. Em Lições é possível ter diferentes abordagens para as condicionantes desta jogada, chamada de Jogada de Desfecho. Na partida que jogamos, todos os objetivos foram criados pelas participantes, fazendo com que a própria progressão narrativa seja avaliada e experenciada a cada Cena. E este componente mecânico também deslocou uma possível frustração por não ter o “clímax da partida” pela leitura e interpretação do fenômeno do jogar a cada momento, a cada comando efetuado pelas participantes.
O que tento trazer à reflexão neste texto é que, a distinção entre o “mundo do jogo” e o “mundo off” não é algo fixo. As fronteiras são negociadas, deslocam-se e, inclusive, fazem parte do design dos jogos. Não é raro que, em meus jogos, elas se imiscuem, tensionem-se e, vez por outra se atritem. O último caso é explícito em Ceifadores, por exemplo.
E, justamente por isso, penso que em Ceifadores as interrupções e sinistros que ocorreram na partida teriam um impacto muito diferente não apenas na narrativa, mas também para a leitura, para as memórias, para a atribuição do sentido do jogar que as participantes — inclusive eu — teriam. Não é por outro motivo que eu descrevo literalmente em Ceifadores que as partidas deste jogo foram desenhadas para serem mais curtas e intensas que outros jogos. E todas as mecânicas de Ceifadores direcionam a isso. Em resumo, tudo o que foi considerado “ok” e “de boas” na partida de Lições teriam outro peso em Ceifadores, pois ambos os jogos, suas mecânicas e dinâmicas, lidam não apenas com a construção da narrativa “ficcional”, mas com a hermenêutica acerca do próprio jogar. O que o jogo trata não é apenas da ficção, do mundo do jogo, mas também afetam/interferem a interpretação do ato de jogar por parte das participantes.
E sim, isso é uma preocupação de design. Incorporar o “fenômeno social de jogar” às intencionalidades em torno da estética, ergonomia, mecânicas, recursos, dinâmica e demais variáveis para a construção de um jogo é um ponto que tenho me dedicado há algum tempo. Interessam-me as interconexões, intersecções, contradições e ruídos nas e entre esferas (que cada vez menos considero distintas, mas apenas instâncias performáticas). E, nalguma medida, as soluções que encontro em meus jogos partem destas questões (Magos Lacunares da Torre Púrpura, Ceifadores e Lições são exemplos diretos disso).
Neste sentido, cada vez mais, ouço Rosa nos rodapés das minhas páginas. Molho os pés em rios ludonarrativos, olho ao redor e escuto com atenção. Num lado, a/à margem dos comportamentos das participantes. Noutro lado, a/à margem ficcional. E, ali, na (in)junção, a/há/à terceira margem. O jogo acontece quando se parte em sua direção, objetivamente inalcançável.