Sobre a complexidade de jogos
Jogos complexos não são necessariamente difíceis. Jogos simples não são necessariamente fáceis. Jogos minimalistas não são necessariamente próprios a iniciantes. E nada do que afirmei se relaciona com gosto ou preferência pessoal.
Caso definirmos a complexidade pelo número de comandos disponíveis, recursos manipulados e mecânicas de jogo (e suas interações), Lições é meu jogo mais complexo, porém mais fácil de se apropriar que Pesadelos Terríveis, que é um jogo muito mais simples.
Mas a definição de complexidade sob a leitura do jogo enquanto produto e prática cultural é um tanto mais complexa. Ela precisa considerar a sua inserção ou distanciamento à tradições, já que projetamos comportamentos ao jogar algo que possuímos algum repertório.
Por exemplo, ainda que a Reserva de Protagonismo seja um recurso simples em Arquivos Paranormais, a leitura do mesmo como "pontos de vida" enseja ações dos jogadores que precisam ser complexificadas para a compreensão de sua proposta.
É por isso que o Protagonismo em AP, algo que poderia ser simples, torna-se complexo. O repertório prévio que se tem na tradição de jogos narrativos também interfere na complexidade, e temos de ter atenção a isso durante o projeto, desenvolvimento e testes do jogo.
Por outro lado, jogos supostamente simples que possuam muitas propostas distintas a certas tradições podem ser, em verdade, complexos. A complexidade não se relaciona necessariamente ao volume de mecânicas que o jogo possui.
Considero interessante pensar no esforço até o cumprimento da tarefa que constrói a experiência para lidar com a complexidade do jogo. E aqui, operações subjetivas, processos criativos emergentes, tomada de decisões, previsões de jogadas futuras e administração de recursos ganham relevo.
É aqui que Lições se destaca. Ainda que haja 6 recursos narrativos distintos em jogo, cada qual é delimitado, possui relações internas e efeitos discretos. Os jogadores não brecam ao lidar com a complexidade.
E muitas vezes a grande abrangência de possibilidades presentes em "jogos simples" gera o adensamento da ansiedade e o que alguns chamam de paralisia de ação.
Não é objetivo deste texto discutir nuances sobre o que se chama de paralisia de ação (pois tenho muito a dizer e criticar sobre ela). Talvez faça um texto sobre isso em outra oportunidade.
Tampouco considero jogos que fornecem menos parâmetros para execução de comandos de jogo (que podemos chamar de jogadas) inferiores ou vagos. Além deles implicarem um modo de jogar (sinto falta de reflexões sobre este tema), há escolhas criativas que servem até mesmo a imprimir o andamento da narrativa em jogo.
Em Magos Lacunares da Torre Púrpura ou em Encantos, o uso da Reserva de Energia para ativar a magia ocorre de forma distinta, mas em ambos os casos há uma intenção de, por meio de uma concessão narrativa, alterar a cadência da história.
Ambos jogos são mais simples que Arquivos Paranormais ou Lições, mas neste ponto (magia em jogo), a abertura à construções narrativas mediadas por recursos (energia) insere complexidade superior aos demais comandos do jogo.
Note que esta escolha não é sem propósito. São jogos sobre magia. Assim sendo, a magia é um ponto de interesse e complexidade ao jogo. Ocorre que essa complexidade pode ser maior àqueles que portam os efeitos de reservas mágicas (mana, slots, etc) em seu repertório.
Um outro efeito que merece atenção às "aberturas subjetivas" no design de um jogo é a repetição de comandos. Vale pensar em mecânicas (eu gosto de explorar recompensas) que explorem várias soluções de conflitos emergentes.
A estrurura das minúcias do Sistema L'Aventure e as distintas recompensas nos jogos (atenção às de Magos Lacunares, Lições e Ceifadores) servem a isso, basicamente.
Por fim, um papo rápido sobre jogos minimalistas. Com o que foi comentado por aqui, já dá pra saber que eles nada se relacionam a ser simples ou complexos.
Pensando em design, minimalismo é muito mais denso que ter muitas ou poucas regras ou páginas. Ainda que não haja uma única definição, podemos abraçar o minimalismo em sua definição com uma única palavra-chave: síntese.
E um jogo que se vale da síntese de comandos, recursos e mecânicas pode ser muito, muito complexo. Asas da Vizinhança é um jogo minimalista que considero bastante complexo, bem como Sinestesia (recomendo conhecê-los).
Muitas vezes recomendamos jogos curtos (que também não são necessariamente minimalistas) a iniciantes porque "há poucas páginas" e acho isso bem estranho.
Não me furto de comentários, exemplos completos e orientações objetivas mas não menos detalhadas em jogos que penso que serão a porta de entrada de jogadores.
Mas não critico jogos criados para jogadores experientes. Temos praticamente meio século de jogos narrativos e não acho errado, inferior ou ruim dialogar com tradições (ou mesmo projetar as lacunas).
Contudo, eu moro no Brasil e faço parte de uma cena que precisa investir na formação de leitores-jogadores-criadores de jogos narrativos. Aí é aquele papo de formação de público que está presente em toda a produção cultural.
Um exemplo de jogo minimalista que tem um ótimo potencial de ser um jogo de entrada é o Travessias. Contudo, Rola-Bosta, jogo minimalista que publiquei este ano, fala mais com jogadores que têm repertório lúdico (pois ele é um metajogo) que com iniciantes.
Ou seja, nada impede que você desenvolva jogos simples, complexos, minimalistas (sintéticos) ou analíticos (cheios de guéri-guéri. E sim, se usam o guarda-chuvas "crunch" eu posso usar guéri-guéri, brincadeira).
Todo este papo veio com a comparação de partidas de teste. Ano passado testava Magos Lacunares e este ano testei Lições. Os jogos são muito diferentes e me fizeram repensar sobre o que é dito sobre jogos narrativos.