Olha essa ficha! Essa ficha!?!?!— Um ensaio sobre práticas culturais da comunidade de jogadores de RPG de mesa
Há alguns dias um assunto tomou os fóruns de discussão de jogos de RPG no Brasil: uma planilha acerca do consentimento de temas sensíveis nas partidas.
Esta planilha foi uma tradução feita por pessoas preocupadas com jogos seguros, com boas práticas à mesa. Eu não sou tradutor e há termos bem complicados para traduzir ali, por isso fiquei feliz com a iniciativa da comunidade em divulgar uma ferramenta criada com uma finalidade tão importante em nossos tempos. Contudo, fiquei um pouco receoso com o impacto que a ficha teria, sobretudo por acompanhar há algum tempo não apenas os comentários, mas a estrurura retórica utilizada por jogadores e, sobretudo, como se dão as práticas culturais em torno do RPG.
A reação imediata
Nas discussões dos fóruns muito se falou sobre “veto a temas”, “polícia do RPG”, “mimimi” e outras expressões que, em resumo, consideravam a planilha algo arbitrário, autoritário, uma forma de restringir as temáticas e a própria intensidade narrativa das partidas.
Para além de um claro posicionamento político que estas representações sociais refratárias à alteridade lúdica exprimem, podemos identificar um comportamento típico em vários tópicos dos fóruns: uma espécie de simplificação metonímica (todo pela parte/parte pelo todo) de um texto. E penso que não se trata de um hábito isolado da forma que os manuais e o próprio jogo se encontram na tradição construída. Inclusive penso que a reação à planilha é um índice da conservação, do reforço de certa tradição.
Contextualizando
A planilha faz parte de um suplemento chamado Consent in Gaming, escrito por Sean K. Reynolds e Shanna Germain, disponível gratuitamente aqui. Trata-se de um manual que fornece ferramentas e orientações para a condução de partidas de RPG inserindo temas sensíveis sem ferir os participantes. O manual é conciso e objetivo, repleto de referências adicionais, exemplos e uma excelente organização de informações. Enfim, é um bom texto, já que ele cumpre o que ele se propõe a fazer: ser uma referência com orientações em torno de consenso e segurança em jogos de RPG. Cabe destacar que o principal mérito da obra não é exatamente o caráter inovador, uma vez que muitos temas tratados (até mesmo a planilha de temas sensíveis) já foi tratado. Neste sentido, compilar e sintetizar questões há anos tratadas e publicadas em diversos jogos é algo positivo como referência para jogos seguros.
Foi uma amiga que me informou sobre a existência do livro e, me surpreendeu positivamente a coesão do texto. Li o manual durante um dia e recomendei a muitas pessoas, chegando a compartilhar o link para baixar o livro em redes sociais, explicando brevemente sua proposta. Estava viajando e não me esqueço da conversa que tive com um amigo sobre a objetividade que o livro possuía, muitas questões precisamente tratadas por ali.
E a planilha? O cerne de inflamadas discussões e até mesmo ofensas é apenas a última página do manual. Sim, isso mesmo; houve ofensas, xingamentos e ameaças, gerando banimentos em fóruns, réplicas sem fim e a revelação de algumas falas perigosas, para dizer o mínimo. Tudo por uma página de um manual. Mas o que essa planilha tem de especial?
A planilha não é o suplemento
As páginas anteriores à explicam como utilizá-la, curiosamente respondendo os questionamentos que consideravam-na um absurdo. Inclusive a planilha é apresentada como uma das várias estratégias do manual, podendo ser adequada ao seu grupo de jogo ou abandonada em detrimento de outra prática apresentada no livro.
Lembro que quando vi a planilha traduzida gostei de ver no rodapé a referência completa ao manual, sendo uma ponte para acessar o material integral. A tradução da planilha é importante, e isso ocorre também em fichas de RPG, mas apenas ela não orienta a sua aplicação. Ppr isso que fiquei bem feliz ao notar que os tradutores foram precisos em não descontextualizar a planilha do suplemento.
Cabe destacar que a planilha em si não é — e os autores não a apresentam assim — a solução dos problemas à mesa. Não é em vão que eles listam circunstâncias para aplicação, outras ferramentas e técnicas para a condução e encerramento de partidas com segurança.
Conversado com algumas pessoas e lendo alguns comentários, identifico limites à planilha (como em qualquer estratégia). Mas isso não significa que ela deve ser considerada “um lixo” ou “a melhor coisa do mundo”, ainda que a tendência a julgar produtos culturais esteja cada vez mais próxima deste comportamento. Enfim, a planilha é parte de uma série de orientações que devem ser apropriadas ativamente pelos jogadores para potencializar jogos seguros e mais intensos.
Ocorre que ela foi analisada fora de seu contexto, como muitas vezes temos a reação de “deixa eu ver a ficha do RPG pra entender o jogo”, sendo que este elemento é um fragmento do que o manual propõe. Mas dá pra pensar em outras questões em torno disso…
Uma pausa
Antes de seguir, dois comentários. Primeiro, você notou que não expus nenhuma pessoa neste texto. Há casos de perseguições virtuais (e para além). Já sofri isto por me posicionar e sei como a vida se transforma em um inferno. Contudo, agradeço a todos referidos por aqui pelo compromisso em criar uma comunidade de jogadores melhor. Segundo, não tenho a pretensão de me colocar como autoridade no assunto, alguém que tem verdades prontas ou uma grande lição a dar. Este texto é fruto de observações e reflexões, apenas. E há muitas dúvidas, muitas incertezas por aqui. Penso em uma comunicação propositiva, e não uma série de reclamações, ainda que seja importante revelar as posturas incompatíveis com o jogo enquanto prática social inclusiva e diversa.
Desconstruindo o paradoxo
Uma das críticas mais comuns em torno da planilha, bem como de qualquer estratégia de segurança em jogos é a potencial perda da intensidade ao tratar de temas como violência explícita e outros conteúdos normalmente associados ao terror ou horror.
Entretanto, quando os limites estão claros, um efeito interessante ocorre: nos permitimos ir mais fundo. Ao não termos segurança sobre temas que podemos ou não acessar que não adensamos o que chamarei de entrega por aqui, para não tornar esse texto mais técnico ainda.
A entrega é relativa à confiança, ao consentimento. E estar ao lado de pessoas que partilham de regras claras sobre o que pode ou não ser intensificado faz você ir se soltando e mergulhando mais fundo em temas que seriam bloqueados em experiências as quais você não tem ideia do que pode acontecer.
É por isso que busco apresentar de forma bem clara isto ao jogar e criar jogos. Por quê? A primeira resposta é óbvia, humana: porque acredito que todos merecem atenção aos seus limites, suas emoções e sentimentos. Mas também porque estes procedimentos não atrapalham, mas potencializam as experiências de jogo. E é justamente por esta razão que eu busco soluções específicas em torno destas questões em meus jogos e estudo como outros criadores portam elementos do acordo social para dentro da experiência de jogo, uma vez que os RPGs enquanto fenômenos também se dão na relação dialética entre jogador e personagem.
Processo, fenômeno, linguagem
Jogos são produtos culturais complexos, participativos e justamente por isso apropriados ativamente pelos jogadores. RPGs de mesa são jogos que recompensam o engajamento na experiência de criar narrativas por meio de “atos de fala”. Este tipo de jogo tem regras que interferem/modulam a fala dos participantes em uma relação, normalmente assimétrica, entre participantes.
Procedimentos de segurança têm feito parte de muitos RPGs, não sendo raro encontrar muitas das reflexões presentes no manual sobre consentimento em jogos (o da planilha “polêmica”) dispersos nos livros de regras e em publicações de suplementos e aventuras. E a presença destes conteúdos já ocorre há anos… Curioso… Talvez precisamos pensar em como nos relacionamos com os manuais de RPG.
Como lidamos com manuais de RPGs de mesa
Os jogos de RPG de mesa têm algo muito peculiar: os livros de regras extrapolam a experiência do jogo para além da partida. Inicia-se o engajamento com a atividade por meio da leitura do livro (básico, de aventuras os expansões), e o regresso a ele para consultas é um componente do design de jogos tradicionais de RPG. O livro é um componente que faz parte da cultura material dos jogos de RPG de mesa, sendo sua organização, ilustrações, diiagramação e sua própria materialidade traços que também constróem a tradição em torno do RPG de mesa.
Em outros termos, a usabilidade do manual é pensada como algo recorrente, retroalimentando as narrativas emergentes. Distinto de outros manuais de jogos, o manual de RPG é um objeto que emana a aura do jogo, afetando-o por meio da apropriação dos jogadores dos seus discursos.
Ocorre que os discursos e manuais de RPG são construídos em camadas distintas, algumas próprias a sustentar a zona pela qual a construção narrativa será dada (costumam chamar isto de cenário), outras focadas a orientar os atos de fala (chamam este elemento de sistema), alguns focados na continuidade da narrativa, e ainda traços sobre a convivência e segurança dos jogadores. Cabe destacar que estes tópicos listados não são estanques e que há jogos que se esmeram em aproximá-los, uni-los e vez por outra rasurá-los. Tenho analisado os manuais de RPG nos últimos tempos e tomá-lo como objeto de estudo é uma forma interessante de pensar na proposta do jogo.
Entretanto, não é raro termos uma interface com os manuais distinta de sua proposta. Os usamos de forma meramente consultiva e ignoramos detalhes que orientam a experiência de jogo. Fazemos isso por supostamente já “sabermos jogar”, depositando nossa experiência prévia como condicional para avançar páginas e páginas, visando apenas “montar fichas” e “aprender as rolagens”.
Não é incomum que ruídos em torno da experiência ao jogar RPG se dêem pela não assunção das regras e orientações criadas. O efeito oposto também ocorre: partidas gratificantes que se sustentam pelo conhecimento prévio (o jogo consuetudinário) e que talvez teriam um resultado distinto se houvesse a assunção do proposto pelo manual.
Este componente que sustenta a tradição em torno do jogar RPGs gera situações peculiares. Passa-se a enxergar o RPG como um único modo de jogar, como um único jogo até. Ou enxerga-se diferentes jogos por meio das lentes de algum que tenha mais experiências significativas.
Várias discussões em fóruns listam dúvidas e comentários que estão respondidos nos manuais de regras, suplementos e aventuras e não é raro que haja experiências ruins por não se seguir o que foi listado como regra para jogar. Há, por outro lado, defesas generalistas a jogos que não tem por objetivo atender a certas propostas específicas.
As práticas culturais acerca dos manuais de jogos de RPG as consideram um apoio à tradição — notadamente construída oralmente, mas também cada vez mais relevante em transmissões de partidas por diferentes mídias — e não como uma proposta distinta, por vezes servindo a rasurar/questionar/subverter esta mesma tradição.
É por isso que muitas críticas em torno da segurança à mesa presentes na planilha e no suplemento sobre o consentimento não me surpreenderam.
Ainda que presentes em vários jogos, a forma pela qual lidamos com os manuais (projetando a os hábitos e práticas culturais que já temos e não assumindo a proposta que o jogo possui) bloqueia a interpretação de novas propostas. Em outros termos: jogamos o que queremos, e não exatamente o que o jogo propõe, pois assumimos a tradição como um mecanismo de construção identitária e validação pela comunidade.
Entrega, partilha, estar em jogo
O RPG de mesa é uma prática social. É um momento que nos pomos em jogo, que estamos com outras pessoas para criarmos narrativas em conjunto. RPG é entrega, aposta, afetos e se por em risco, em jogo, no jogo.
Se há uma paradoxo legítimo em jogos para lidar com o que você não é e criar com isso coletivamente lidando com outros é considerar mecanismos que sublinham o aspecto social da prática para potencializá-la algo prejudicial ao jogo.
Ler manuais e não identificar estes componentes é um posicionamento, mas também a expressão pela qual nós interagimos com manuais de jogos de RPG. Não ler, não fazer, não buscar distintos posicionamentos e investigar os textos são atitudes que buscam conservar a tradição. Mas… que tradição?
Descolamentos
O que apresentei até agora como tradição é uma construção, uma invenção, um conjunto de práticas (discursivas ou não) que legitimam o que é ser “jogador de RPG”. E tudo isso não é algo fixo, porém atravessado por distintas relações políticas as quais raça, gênero, classe social e outras variáveis apresentam-se enquanto balizas em disputa, em um território de constante tensão e reconfiguração.
E se é possível ver a crescente demanda por conteúdos que explicitam as tensões sociais em jogos de mesa, a tradição (enquanto prática conservadora) opera por vezes contra os manuais, em uma espécie de registro paralelo, digamos assim.
A oralidade que estrutura a prática (jogar RPG) é evocada para deslegitimar os manuais e manter balizas tanto na prática quanto na pertença de grupos inseridos na mesma (tradição). Ser um “jogador de RPG raiz” já é performar na tradição, a alimentando.
Entretanto, não há uma oposição clara entre registros de oralidade à mesa e manuais, e não é minha intenção polarizar o debate, considerando os livros sempre responsáveis e jogadores “que não leem os manuais” culpados (crítica que normalmente é indica um componente de classe no mínimo perturbador). Pelo contrário, questiono a “não leitura” como uma operação discursiva do jogador tradicional, aquele que se orgulha por ler todos os livros. É justamente o iniciante que se vê acolhido por manuais sensíveis e complexos e que exploram outras potencialidades em torno dos jogos de mesa.
Penso que o deslocamento do registro escrito para o oral enquanto prática discursiva é o índice do apelo à oralidade como salvaguarda da tradição. E este movimento não é fruto de ignorância, mas de uma espécie de reafirmação da identidade construída sobre a tradição “jogador de RPG”.
O meio
A planilha sobre o consentimento em jogos foi cerne de polêmicas justamente por circular em grupos de jogadores. Era previsível que em espaços onde há comportamentos baseados em prestígio e legitimidade através de apelo à tradição conteúdos alheios ao “no meu tempo” fossem rechaçados. Contudo, experimentei partilhar os conteúdos em outros círculos e não houve reações negativas. Claro que o que apresentei é uma evidência anedótica, ainda que tenha contato com centenas de jogadores mensalmente. Porém, cabe destacar, por outro lado, que argumentos bem fundamentados em torno de orientações sobre segurança à mesa foram feitos por pessoas que acompanham debates acerca dos jogos de mesa e as mudanças na redação de manuais de jogos (que sim, são documentos históricos e se relacionam com o seu tempo). E isso é algo bastante positivo.
Questionamentos
Como disse, não tenho a intenção de esgotar o debate o mesmo de apresentar respostas sobre recorrentes polêmicas em torno dos jogos de RPG de mesa. Mas quis dividir algumas observações, indagações e reflexões sobre a complexidade das práticas culturais que se constroem dentro e fora das mesas.
O RPG de mesa enquanto modalidade de jogo, os manuais enquanto objetos “ativos e ativados”, a comunidade enquanto território político, o design vulgarizado e propositivo e as interpenetrações entre os fatores conjunturais e o “mundo de jogo” tornam observações um pouco mais complexas.
Vale questionar se o que estamos debatendo é mesmo sobre gosto ou preferência nas mesas ou se a discussão é sobre derrubar ou não os muros do clubinho.