Jorge dos Santos Valpaços
2 min readNov 17, 2023

Obrigado, Leôncio

Encontrei um pedaço precioso de mim no cabelo bagunçado da preguiça. Discordo que não há tempo pra viver. Só se está acordado demais.

Então levanto num dos momentos que posso esquecer que fui ébrio. Aqui, na cunha de texto que me marca, sou dúvida e risco brincante. Dou passo à frente no precipício da memória. A viagem vai ser boa; garanto com a certeza dos dedos cruzados.

Na queda-vida-em-morte, encontro sorrisos de cama macia, passeios lépidos fora do rotina e olhos feéricos. Mergulho fundo.

Desvio de assombros do passado recente fazendo manobras no ar. Sou o Sonic no air dive, e faço 88 pontos manobrando o que me atravessa. O grito, porém, é inescapável. Setenta e quatro anos pesam, tal qual a aluna que abandonou a escola, o aluno cadeirante que perdeu o transporte pra escola e todas as aflições servidas no café da manhã.

Pudera ser melhor jogador, e desviar incólume de tantas experiências rememoradas. Mas vacilo por olhar a vida faminta em calçada quente e perder a fala, confundir a mente e entristecer.

Antes de entorpecer, o vizinho da frente me puxa pro lado. Leôncio é acumulador. O típico cara estranho da rua. Nos trambiques, rolos e catações — cuidado ao levar o lixo, ele pode te atacar —, Leôncio foi inalando sua casa com tralhas de 5 dimensões. Ao passar por ali, não contemple. A paisagem não euclidiana (pois a Euclides Faria é outra rua) derreterá seu recheio de cabeça.

Ninguém curtia Leôncio. E olha que ele não quer matar pica-paus. Eu mesmo o evitava, e ainda não consigo achar o cheiro do corredor doce, tamanho o lixo e urina de animais.

Ocorre que a esquina da vida é curiosa. Numa kombi, um dos rolos, ele removeu o adesivo enorme contra o direito de interrupção da gravidez. Noutro carro, o adesivo Brizola foi mantido. E foi posto mais um, buscando a legalização da maconha. E a placa da rua Mariele Franco não foi vendida, mas doada com orgulho para a moradora da rua do lado, que se emocionou ao encontrá-la no gabinete de curiosidades do sucateiro.

Nunca conversei sobre quaisquer temas “divisivos” com Leôncio. Mas me surpreendi com encontros e ideais partilhados. Agora, quando cuido de meu pai, Leôncio ganha foco na figuração da minha história. Sempre pergunta, puxa assunto, acena com a cabeça. Nada faz além de existir “estando aqui”. E é por isso talvez que converso com ele, do meu jeito, no texto que escrevivo.

Sigo num dia lento. Hoje vai ser ensaio do futuro descompromissado. Dou-me este presente de presente. Afinal, se ainda vivo, é natal.

Jorge dos Santos Valpaços
Jorge dos Santos Valpaços

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