Jorge dos Santos Valpaços
3 min readJan 26, 2023

O que é um jogo de encontros e enganos?

Se há uma coisa que aprendi, durante estes anos, lá no Lampião, é que criamos jogos com palavras, de palavras, sobre palavras. E Cruzos tem muito a ver com isso.

Nada de muito novo para quem estuda criação de jogos. Há conceitos fortes e fracos, verbos, palavras de ação que preconizam a tomada de decisão por parte dos jogadores.

Observe, por exemplo, as 8 perícias de Arquivos Paranormais. Elas não estão lá arbitrariamente. São 8 verbos típicos que um detetive sobrenatural mobiliza para recolher pistas. É esperado que, para trabalhar na Agência, você tenha alguma agência sobre intuir, mover, buscar, etc.

E o recorte também é parte do orientar a experiência. A existência de 1 único verbo para pancadarias e afins - combater - já diz que AP não é um jogo sobre violência. Inclusive, se você ler o manual agora vai encontrar um exemplo de como é possível colher uma pista durante o combate.

Em sentido oposto, Ceifadores tem todas as Perícias orientadas a matar. E todos os exemplos explicam como usar cada uma das ações típicas dos matadores de aluguel pra tirar a vida de outra personagem.

A escolha de palavras e as figuras de linguagem subjacentes não são acessórias em um jogo que se "realiza" (torna-se real/cria realidades) por "atos de fala" (ações discursivas). Por isso que Chamar os Holofotes para Si (Arquivos Paranormais) ou Manifestar um Horror (Herdeiros dos Antigos) significam mais que "jogar de novo" ou "usar um poder especial".

O desafio está nas tensões entre os registros. A mídia livro registra palavras que serão ativadas, em sua maioria das vezes, pela voz. E não é raro que estude estas tensões. O Bonde Fantástico é, basicamente, sobre pensar no sentido oposto. Da fala ao registro escrito.

Cruzos, meu projeto atual, é um jogo esguio. Uma molecagem. Ele questiona até onde há uma "narração" e até onde há uma "ação por parte da personagem". E o faz reinterpretando conceitos comuns em jogos e narrativas.

Um encontro em jogos costuma ser uma abertura ao inédito, uma entrega ao imprevisível. Ao nos referirmos a encontros aleatórios já temos uma série de imagens e conceitos em mente, emergentes enquanto alheios à tomada de decisão dos jogadores.

Enganos fazem parte de outra esfera semântica, tradicionalmente associada aos efeitos de falhas e fracassos (são diferentes em jogos), uma incompreensão. Algo que foge da ação, algo incontornável.

Mas em Cruzos, são estes dois termos que definem os trunfos das senhorias, quem manda na parada-do-bagulho-do-esquema-do-lance. Ou seja, as personagens com as quais você joga.

Mas como assim?

As senhorias dos cruzos jogam com os caminhos, com a sorte. São elas que provocam desvios, ligam e separam os destinos. Enquanto protagonistas topam com encontros e enganos, as senhorias dos cruzos agem por meio deles.

E aí as coisas ficam interessantes.

Estes 2 trunfos (encontros e enganos) não poderiam ser opostos binariamente, mas imiscuídos, complementares. Eles não poderiam se associar a sucessos e fracassos e lidar níveis ou parâmetros discretos de equiparação de poder.

Estes desafios acima se adequam à experiência alheia ao modo de vida imperial que norteia a narrativa proposta por Cruzos. E quando eu (con)fundi a aleatoriedade da geração processual de histórias (geradores) à lógica de "testes de atributos", desloquei o sentido do jogar dados para algo que demanda tomada de decisões, mas que não se alicerça nas competências das personagens.

E nada disso poderia acontecer sem "jogar com as palavras". Usar o repertório lúdico buscando "trunfo" enquanto recurso "maroto", e explorar semanticamente as possibilidades de encontros e enganos na narrativa (além da óbvia, porém nem um pouco acidental proximidade fonética ente os termos) me levou a (re)pensar em como se jogam histórias.

Acredite, Cruzos é um jogo miúdo. Mas há anos matutando essa incompostura (galera do Lamps sabe bem). Acontece que este jogo precisava do tempo de preguiça boa pra acontecer. Ainda bem que pude relaxar na Vila do Caju, aliviar A Tensão e aprender uns lances com o Bonde Fantástico.

E não é que joguei um monte de palavras nesse Cruzo? Trabalho feito... trabalho feito...

Cruzos tá em campanha de lançamento. Você pode chegar junto e se deixar levar por este desvio em catarse.me/cruzos

Jorge dos Santos Valpaços
Jorge dos Santos Valpaços

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