Não tem jogo: falhas, fragilidades e desistências
(texto originalmente postado no blog do Lampião Game Studio)
Este é um texto incomum sobre atos comuns. E talvez, justamente por isso, seja um texto tão incomum aqui neste blog.
Há mais de um ano eu compartilhei esta foto em meu perfil pessoal. Ocorre que naquele momento comecei a pensar em um possível Guia de Campanha para Déloyal (jogo que escrevi com Rafão Araújo). Naquele mesmo dia marquei amigas, conversei com muitas pessoas e tentei muito, mas muito mesmo, criar algo interessante e, ao meso tempo sensível para o jogo. Não parecia algo difícil, já que já criei vários Guias de Campanha para Déloyal.
Mas eu não consegui e desisti de fazê-lo.
Foram meses de rascunhos, mais conversas, mais textos, mais reflexões e nada saía. Nada. Absolutamente nada. Na verdade saía, mas era tão pesado que não conseguia progredir. Eu falhei na minha proposta inicial. Eu desisti. E não há nada de errado nisso.
É claro que a gente fica tentando racionalizar os motivos para não conseguir. Penso que a conjuntura política contemporânea (não apenas no Brasil), minhas feridas abertas, não ser uma mulher e justamente por isso não ser capaz de desenvolver todas as potencialidades que o Guia de Campanha teria (a proposta era, inclusive, que este Guia de Campanha fosse jogado apenas por homens, porém mestrado necessariamente por uma mulher), e, sobretudo, a fragilidade que me fraturou durante todo o ano de 2018 e culminou na escrita de Ceifadores são fatores que podem explicar porque não consegui completar esse projeto. Não me oponho a quem desejar criar esse Guia de Campanha, mas penso que não conseguiria nem ao menos jogá-lo. E isso nos leva a outra questão.
Na palestra no Diversão Offline 2019 sobre desenvolvimento social de jogos (troca instigante com as experiências de Ly Pucca e Lukas T. Malk) algo importante ocorreu. Fui questionado sobre como eu me aproximo de jovens em situação vulnerável e como encaro as falhas nas oficinas e projetos que conduzo.
Eu exponho minhas fragilidades e as divido com os participantes.
Lembro que quando falei isso, que abraço meus limites, sabendo até onde posso ir e falo, com honestidade e prezando pela partilha, com cada jovem nas oficinas, foi algo surpreendente. Mas não apenas faço isso ante as crianças e adolescentes. Eu me entrego em completude, apresentando meus defeitos e limites, e essa comunicação sincera sobre o que eu sou/faço/escrevo é uma coisa muito difícil, sobretudo porque a pena do escritor é também uma máscara, e vivemos em uma espécie de era da produtividade e da eficiência.
Quando lancei meu primeiro RPG pela Avec Editora, o Artur Vecchi (meu editor) conversou comigo na Bienal do livro. Aquela conversa foi muito interessante. A despeito da correria que é uma Bienal (ou qualquer grande evento), foi possível conversar sobre o que está para além do livro pronto. Um livro, a criação de uma aventura de RPG, ou até algo mais simples como essa postagem no blog, costumam ser vistas como algo pronto, concluído, fechado. Mas há uma economia de afetos e afetações intensa desde o planejamento até a comunicação. Há quem se feche neste processo, mas eu busco ser atravessado por ele (em Asas da Vizinhança e Pacha isto é bem claro, por exemplo).
Quando a gente vê algo sendo produzido, um livro pronto, um projeto fechado, normalmente não pensamos no processo, em suas vicissitudes, nas falhas, nas fragilidades e nos afetos que atravessam tudo isso. Considero até interessante a ideia de “não deixe as ideias presas no papel, as termine” o que se soma com “melhor mal feito que não feito”, tão em voga na pedagogia hiperprodutiva de nossa conjuntura. Mas a racionalidade técnica destes discursos (que possuem elementos positivos) também são criticáveis.
Sim, eu sei que é muito importante fechar projetos, concluir o que você faz. Isto ajuda muito a você adquirir experiência e sobretudo a não se sabotar. Contudo, abraçar a falha, a incompletude e aprender com isso (e citar o lançamento de Pesadelos Terríveis, bem como Asas da Vizinhança não foi em vão, já que abraçar as fragilidades é uma das metas do jogo) é algo que também é importante em atividades criativas. Lidar com falhas e desistir é “parte do jogo” e, muitas vezes introjetamos culpa por não concluirmos ou nos pressionamos para terminar tudo que nos propomos, sendo que isso por muitas vezes nos aprisiona em situações que apenas nos desgastam.
Um livro pronto não significa que foi feito de uma única vez, que tudo o que você desejava está por ali e que outros livros não foram abandonados, cancelados, desistidos neste processo. Sim, é muito incomum falar das falhas, do que você não conseguiu fazer, mas considero uma das partes mais importantes para mim desde quando comecei no Lampião Game Studio.
Tenho amigos (inclusive aqui no coletivo) que se frustam muito por não conseguir concluir os projetos. Acho isso muito comum e também fico triste quando isso acontece. Eu tenho inúmeros projetos (o Guia de Campanha de Déloyal foi apenas um exemplo) que simplesmente não consigo desenvolver. Contudo, reitero: não há nada de errado com isso. E saber quando abandonar, desistir, e seguir com a “chama acesa” (afinal, aqui é o Lampião) foi uma das coisas mais importantes que tenho aprendido por esses tempos.
A imagem do Jorge Valpaços (como é estranho escrever na terceira pessoa!) como uma máquina de criar textos e jogos é carinhosa e sou muito grato a quem acompanha e apoia o meu trabalho aqui no Lampião. Mas ela oculta um tanto as tripas e os afagos em cada partida de RPG que conduzo, em cada texto que escrevo. Nos últimos 2 anos, pelo menos, eu desisti e falhei muito, mas muito mesmo. Eu fico nervoso a cada sessão de jogo, a cada parágrafo que escrevo. E busco com todas as minhas forças fazer com que cada jogo seja tenha mais das minhas migalhas da existência, que eu possa tensionar a linguagem dos jogos para me expressar e isso é muito forte para mim. E neste processo há fragilidade, emoções, desistências e apostas. E esse texto também é parte disso.
É por isso que, repleto de incertezas e tremendo um pouco, termino esse breve relato sobre um pouco de meu processo criativo e sobre a visão que costumamos ter sobre ele. A ditadura do vencedor, a hiperprodutividade, a ocultação da falha e das fragilidades, o não partilhar da economia dos afetos, a despersonalização. Estas são alguns desafios que tento lidar a cada palavra que escrevo, a cada suspiro, a cada novo projeto. Mas Fernanda e John insistem em meu ouvido, mesmo 20 anos depois.