Menos rpg para mais rpg, discussões superadas, outras perspectivas

Jorge dos Santos Valpaços
3 min readMar 4, 2022

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Nos últimos anos eu estudei, constantemente, criação de jogos. Mudei várias vezes minhas perspectivas sobre a conceituação, desenvolvimento e publicação de projetos. Mas talvez uma das coisas mais importantes que aprendi é não restringir o repertório.

Ainda que a maior parte dos meus jogos sejam rpgs, eu não teria criado a metade do que criei sem boardgames, videogames, cardgames, jogos tradicionais, brincadeiras, quadrinhos, literatura, audiovisual.

Pode parecer contraditório, mas há algumas convenções em jogos que só parecem desnecessárias quando chegamos com uma espécie de “olhar estrangeiro”. Talvez seja parte de minha formação enquanto historiador, mas parte de meu processo se inicia desnaturalizando o jogar.

E aí o apelo ao repertório além dos rpgs (e até mesmo de jogos) confere relevo à intencionalidade das escolhas feitas. Ocorre que, por várias questões, jogos em nosso contexto, recorrem a uma série de estruturas que dificilmente seriam borradas apenas tomando-os acriticamente como referente.

Daí, curiosamente, o olhar esguio e esquivo para jogos (sobretudo jogos mais populares) abre a avenida pra lançar o ponta de lança. Mas tem de servir no tempo certo, senão rola o impedimento. E o tempo do passe também é tempo que demanda tempo pra aprender. E aprender é também errar, apostar e falhar.

O que é doido é que a gente (sacomé) não costuma ter o direito de errar. E é por isso que não condeno quem joga seguro. E tudo bem. Eu jogo seguro em muitos campos. É preciso comer e ficar vivo, por exemplo. E pra mim, se eu não jogar seguro em muitas situaçõe, não há segunda chance.

Mas felizmente, no caso dos jogos, rola um lance oposto. No lugar de jogar cada vez mais seguro, o normal a se pensar em quase 10 anos, sinto-me mais tranquilo pra mirar no desvio. E é aí que discordo também da percepção em torno da comunidade de jogos narrativos analógicos pretensamente presa em temas e discussões superadas.

Primeiro, porque “discussão superada” bloqueia novos olhares e até mesmo a entrada de novos jogadores e criadores. Além, você não precisa inventar a roda, nada é criado do vazio. Não raro o olhar conservador vem, contraditoriamente, no interdito aos iniciantes debaterem/experimentarem algo que “foi superado”.

Aí vem a outra camada, a pedagógica. Como é que eu vou falar de comunidade e apoiar a cena se eu chego de voadora na pessoa que tá começando, porque ela “não acompanha o estado da arte”? A gente pode sim criticar, e isso é muito importante, mas tem de ver como, onde, quando e quem tá em jogo contigo.

Não digo que é preciso experimentar tudo e fazer tudo, já que há várias soluções recorrentes (e vendáveis). Mas, bloquear um projeto pela “ausência da disrupção” vez por outra soa mais como discurso de manutenção de posição de poder. E olha que não tem rolado o “mais do mesmo” há bastante tempo por aqui.

Ainda que tenhamos a impressão de que os mesmos temas sejam recorrentes em fóruns, a presença de “jogos doidões” em projetos bem-sucedidos, o crescente número de pessoas autoras e as soluções mecânicas e propostas me faz pensar de uma forma positiva acerca da comunidade de jogos. E é bem legal fazer parte disso. :)

Mas de onde vem essa gente? Onde vivem? Do que se alimentam? Grande parte “ousa” porque experimenta, tem o tempo de sentir o peso da bola, antes do passe. E muitas vezes o “diferentão” não vem do ultra-complexo, mas de um mod bem aplicado, daquele sample que você joga na música.

Sabe quando um “jogo doidão” não vai rolar? Quando as oportunidades de errar, subverter, transgredir, recombinar e brincar forem negadas aos novos e velhos criadores. Num aforismo: “Deixa os moleque brincá”.

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Jorge dos Santos Valpaços
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