Lockdown de afetos em tempos algoritmados

Jorge dos Santos Valpaços
2 min readJun 16, 2020

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Ontem um amigo perguntou porque pareço fechado. Talvez realmente o seja, mas permito-me ir além.

Em mesmo horário, duas postagens partilhadas. Numa, sangro dores rubro-negras. Grande comoção, elogios, apoios. Mas também silenciamentos e rasuras.

Noutra, a transposição teórica à prática, à agência no mundo. Felicidade, mas sem impacto nas redes sociais.

Ambas postagens externaram experiências privadas e foram puramente textuais, imagens extraídas de captura de tela.

A primeira teve centenas de interações, conversas geradas, reações e compartilhamentos.

A segunda recebeu uma visibilidade muito menor, ainda que diretamente relacionada com a edificação de uma sociedade que reduz a emergência da primeira.

Para além de questões de segurança pelo que eu faço, o local onde estou, coletivos e associações que me encontro e ameaças prévias, é a própria estrutura da rede que me mantém fechado.

Não culpo usuários destes meios, uma vez que ele educa olhares e comportamentos. Eu mesmo partilhei o sangramento doloroso impulsionado pela estrurura da rede.

Contudo, atesto que por vezes é melhor ocultar certas experiências e focar minhas energias em esforços que cultivo a cada dia.

Novamente agradeço a todas as pessoas que, por distintos meios mostraram-se preocupadas comigo. Mas é só mais uma terça-feira, ou sexta.

Orgulha-me conhecer tantas pessoas que buscam fazer a diferença em tempos tão difíceis, e gostaria de ser mais forte para agir mais nestes tempos difíceis. Mas tem sido um tanto difícil.

Busco, sempre que possível, partilhar links de vídeos, reportagens, livros, pesquisas e conversar sobre temas caros a outros horizontes possíveis. Mas sei que há mais impacto naquilo que é pessoal, ainda que no oceano de impessoalidade instantânea.

Penso se é complexo entender que o que me atravessa não foi explicitado porque me atravessa, mas porque nos atravessa estruturalmente. E inclusive desver o que se apresenta ou, sobretudo, reforçar repetitivamente um texto representa muito intencionalidade em tempos algoritmados.

Paradoxo: abertura e transparência como fechamento. Reforço positivo para afagos egóicos e práxis sem reforços. Não se trata de privado ou público exclusivamente. A ética enquanto performace é condicionada pelo ritmo de algo que nascera além de nós, mas que se incorporou: robôs de nós mesmos.

O desplugar é plugar. Não romântico, ludita, primitivista. Mas a rasura do ritmo, a dança para além do scrollar, o verso do final do dia e as referências roucas aos textos cochichados pulsam centelhas-sinapses em necropresentes. Nisto, os intervalos, mistérios e complexidades giram e crescem. Difíceis a alguns, mas verdejantes em tecnovidas.

Ei, escuta aqui. Qual era o tema mesmo desta prosa? Eu sei bem e talvez você também. Um convite. A cada parágrafo deste texto, escreva uma palavra. Ao fim, leia. Se houver sentido, permita-se sentir.

Seguirei, sem muito alarde, minhas ações. Talvez seja meu jeito. Afinal, educado por uma mineira, aprendi a importância de escutar e ficar com o olhar bem atento. Consegui, inclusive, observar nuances explícitas em tudo que ainda ocorre.

Enfim, não foi em vão.
Ou ao menos não está sendo.
Ou alguém precisa crer nisso.
Por enquanto.

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Jorge dos Santos Valpaços
Jorge dos Santos Valpaços

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