Lanche no intervalo
O vento acaricia a planície. O som das gramas a tremer agrada a criança que brinca na borda da grande rocha pintada em tons terrosos como o céu que insiste em ocultar as estrelas na esquina do dia.
A contemplação termina. O menino se levanta com alguma dificuldade. É possível notar arranhões em suas pernas. O andar é cambaleante, mas a cada passo a confiança parece regressar. Ele sabe bem que ao se acostumar com a dor, é possível seguir em frente.
Um som gutural é ouvido. Seria um uivo ou um rosnar? Tensão. Mais atenção. As pupilas se dilatam. Os pelos se eriçam. O tremor indica o acelerar do coração. Os olhos perseguem o som, encontram o vazio, o eco, a dúvida. A paranoia se instaura. Teria sido apenas uma impressão? Não há mais dor. O sangue que escorria se converte em cicatrizes. Pouco tempo depois não há mais um arranhão. A criança se reconstrói em potência, em vontade de viver. Impulso primário, evolutivo, consequência do medo no ar que se respira.
Em poucos segundos, uma alcateia se faz margem do lago solitário de apreensão que se convertera. O menino olha para suas mãos e encontra a mesma lança que jurou quebrar, ainda úmida de sangue. Pupilas dilatadas. O coração acelera.
A lembrança emerge. O último olhar é encarado. A lança entrava e saía de corpos conhecidos. Corpos como o seu. Aliás, seria seu próprio corpo?
Quando o menino volta a si, um dos lobos preparava-se para o salto. Correr não é uma alternativa. Os dedos abraçam o cabo de madeira com força. Se estava preparado? Impossível saber. Quanto tempo restava? Não tivera sofrido demais até então?
A primeira mordida foi em seu braço esquerdo, lacerando músculos. O grito mal tinha saído, quando outro lobo se projetou sobre seu corpo, o derrubando para trás. A lança rolava distante, ineficaz.
O sinal do intervalo toca e o garoto não sai de sala. Enquanto seus colegas de classe discutem episódios das séries que assistiram, ele abaixa a própria cabeça. O menino odeia o pátio da escola. Odeia o olhar dos outros. Odeia tudo aquilo.
Mesmo morando há poucos quarteirões do colégio, ele faz questão de sair de casa em cima da hora. Não quer conversar com ninguém. Anda rápido, evita contatos. Ainda assim, vez por outra, seu ombro é tocado por uma mão que o congela: pesada, forte, inconfundível. A mesma mão que já acertou suas costelas por tantas vezes.
— Tá correndo por quê? Que pressa é essa?
— Eu tô atrasado. Me deixa, cara.
— Que isso? E nossa amizade? Você não vai fazer a desfeita de ignorar seu amigão aqui, não é mesmo?
— Eu não fiz nada. Por que você me persegue?
— Porque você é fraco e eu preciso marcar uns pontos.
O intervalo por vezes é interminável. As pernas se agitam em um ritmo frenético e constante enquanto o menino tira de sua mochila uma vasilha de plástico, com um sanduíche de pão de forma recheado por queijo e presunto. O lanche é gostoso, mas precipita a sede. Sem se tocar, ele se pega andando na direção do bebedouro. Mas a moldura da porta da sala de aula é uma barreira. Ele congela e se lembra que os lobos estão no intervalo. Não, ele não vai.
Os gritos são abafados pelas mordidas dos lobos. O calor e a ardência se confundem a cada vez que sente um naco de carne ser arrancado de seu corpo. Ele está prestes a se entregar. Os olhos miram o céu cada vez mais escuro e azul. O vento não é mais sentido. Por mais uma vez a angústia e impotência o dominarão.
Mas o que é isso em sua mão? Uma rocha lascada, uma faca construída por ele mesmo, mas ainda sem cabo. Ele pega a ferramenta e tenta ferir um dos predadores. A faca não entra no couro dos animais. É preciso mais força. Mas, para isso, é preciso segurar com mais firmeza a pedra afiada. A mão se fere, mas ele não sente mais tanta dor, apenas o sangue que volta a escorrer. E, em um movimento bruto, a faca penetra no pescoço de um dos lobos.
Ele matou um lobo pela primeira vez.
Sem forças para se levantar, o garoto decidiu não mais fugir, mas chamar a atenção dos lobos. Agora ele sabia manusear um instrumento letal. Dois animais foram ao encontro da própria morte, atraídos pelo sangue fresco do jovem caído. Já eram três lobos mortos naquela noite. Os demais, inclusive o líder da alcateia, finalmente decidiram se afastar. Mas era possível enxergar a vingança e a retribuição nos olhares de cada um.
— Não sei se você realmente me conhece, cara.
— Mas é o quê, tampinha? Agora passou a responder o amigão aqui?
— Não tenho tempo pra você. — O menino, pela primeira vez, olhou nos olhos de quem o intimidava e seguiu para sua sala.
Aquela foi a primeira noite que teve um sonho diferente dos de costume. Os seus pesadelos eram recorrentes. Sempre sozinho como um garoto nômade em um mundo primal e precário, tinha de lutar para sobreviver. Seu destino era sempre trágico. Contudo, ao invés de fugir, naquela noite, ele abraçou o seu medo e seguiu em frente, afastando os lobos, ainda que se machucando muito com isso.
Alguma coisa mudou na vida daquele garoto desde então. E aquela manhã provava isso. Ao atravessar o portal da sala de aula no intervalo, ele conseguiu enxergar uma espécie de aura bizarra ao redor de alguns valentões, enquanto passava pelo corredor e olhava para o pátio. O que seria aquilo? O que estava acontecendo?