Faaaaaaaaala

Jorge dos Santos Valpaços
6 min readSep 27, 2024

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Elisa Lucinda. RPG de mesa. Calor. Trabalho. Papo de bar. Escrita. Vida. Ensaio. Poesia.

Durante a peça Parem de falar mal da rotina, a poesia se fez questão (e quando não se faz?). No segmento sobre educação escolar, MC Poze do Rodo se encontrou com Leci Brandão para dar uma aula. Elisa, que os incorporou, feita em santo que é, e professora que sempre foi, lançou a braba aos professores presentes: “Que aula você daria com estas canções?”

Uma professora respondeu de pronto. Uma boa resposta. Ela ganhou um livro. Mais tarde, no mesmo espetáculo, sua aluna do EJA ganhou outro livro de Elisa. Foi a primeira vez que ela e muitos de seus colegas, vivenciaram o teatro. O sublime se fez algodão-doce voando até chegar ao céu da boca da criança.

Eu não consegui voar. Grilhões me prendiam no chão. Horas depois, ainda ensaiava a resposta da questão de Elisa. Já se passou um dia e eu sigo pensando no plano de aula de Poze com Leci. No morro do pau da bandeira em ritmo de funk. Em tudo que me paralisou. Em tudo que não disse.

eu não sei dizer
nada por dizer
então eu escuto

Não sabia que ganharia algo. O livro teve o melhor destino. O único possível. A vida seguia em sua plenitude. Ainda segue. Mas eu sigo cavucando o que poderia me fazer mais leve se a bruma do esquecimento cobrisse minhas noites agitadas.

Lembrei do jogo de palavras que gosto de inventar. Numa das definições de RPGs de mesa, tratam do improviso como algo inerente à experiência. Se o for sem pressão, danço. Mas dedo em riste, olhares e a frase que consideram tão comum — o que você faz? — mais me prendem do que me movem. Vestido de ansiedade, não de errar, mas de repensar em outras opções de ação, me frustro quando o risco vira condenação. Para o jogo da vida, a minha classe de personagem não tem muita permissão de falhar, de errar. A existência do lado de cá nunca deixou de ser oldschool. E o que menos quero, quando jogo, é sentir o toque gelado do cano de metal na nuca ou na têmpora.

Por isso que em todos os meus jogos há uma espécie de design impetidivo de aumento de tensão social à mesa. Recursos emergentes que redirecionam o apontar para outro lado. Quando criei a mecânica que direciona os olhares de todos ao dado da vida em Ceifadores, por exemplo, fiz com que quem ficasse olhando no olho, encarando os demais, tivesse, veja só, uma desvantagem.

Sim. Você não sabia disso.

Não se aflija. Eu também não sabia, no tempo de ontem. Damos sentido às escolhas quando amarramos eventos, suspiros, perdas e gozos na narrativa que inventamos ao jogarmos com a memória. E é sempre o presente que faz com que os acessos que fazemos aos ontens ganhem novos sabores.

Mas este movimento não é — puramente — incidental.

se você disser
tudo o que quiser
então eu escuto

Atesto, contudo, que antes de falar, preciso ouvir. E a escuta da fala do tempo é a mais difícil. É preciso filtrar bem o café frio da nostalgia e da dor que o passado carrega consigo. Meu tempo é de turno pensado. De escrita lenta. De mansidão, decantação. A resposta imediata não permite girar o dedo no cachinho do cabelo, o que a gente pode chamar de existência descompromissada. Ou seja, a que importa.

As poucas horas de sono não deixaram pesadelos assarem. Eles precisam de tempo pra fermentar. Felizmente. Por outro lado, as olheiras solaram o bolo do meu dia. Sorte que há sesta às sextas. Mimi gostosim. Recomendo.

Mas, na manhã do dia, nasceu o calor no trabalho que se transformou em notícia de jornal. O repórter, ao me entrevistar, questionando sobre o impacto da ausência de ar condicionado na escola, esticou o microfone. Ali, naquele momento que poderia ser feliz, congelei. E a pedra da paralisia da ação não era bloco de gelo. Ela nem tinha o frescor do mármore. Disse o óbvio, falei sobre condições de trabalho extenuantes. Sobre o descaso com a classe docente. Mas não diria isso se soubesse da pergunta, se soubesse ao menos que seria entrevistado. Por certo eu falaria algo como: “É preciso de afeto, arte e presença para educar e para aprender. Dentro de salas com sensação térmica de quase sessenta graus, tudo o que você quer é não estar ali. O mínimo que exigimos — não se pede por um dever do Estado — é que seja possível haver laços nas escolas. Laços que conectam os alunos e professores, laços que permitem as trocas, as troças e as disputas, laços que tecem saberes, laços que torcem o claustro-escola. Com o calor, nem mesmo errar é permitido.”

Eu sei que esta resposta não seria publicada. Mas não me frustraria por não tê-la dito. E este sentimento me atravessa a cada conversa, pretensamente leve, “papos de bar”. Normalmente eu sou prolixo. Falo um monte. Mas apenas quando tenho o lugar de palestrante. Na troca, prefiro ouvir. Sorver o sumo da fala de outrem. Analisar seus gestos enquanto expectador da vida. É prazeroso. Mas saber a hora de entrar, quando começar e quando parar, é um tanto difícil para mim.

Imagine que você vai pular corda. Há duas pessoas batendo duas cordas que giram em altíssima velocidade em sentidos opostos. Você tem de entrar. Precisa calcular certinho. E lá dentro seguir pulando, senão vai tomar um tombão daqueles. É assim que me sinto quando tenho de “tomar partido” num papo.

Mas me dê um papelzinho e cinco minutos pra eu falar…

se eu não entender
eu não vou responder
então eu escuto

Num palco com fala estruturada — sala de aula, jogo de RPG — tenho a brecha pra me expressar vocalmente com menos pressão. Não sigo exatamente um roteiro. Mas uma dinâmica bem marcada para me expressar me permite experimentar alívios: drops de menta em copo d’água no final de tarde de fevereiro.

A questão, Lucinda, é que poema é parto. E o nascimento da alma é coisa demorada. Pra guitarrista de jazz (uma espécie de partido alto sem o esquindô dos nossos batuques) improvisar, a pestana já foi feita por mais de uma vida inteira — pois há toda uma ancestralidade subjascente. Chul-Han me dá o esconderijo que preciso ao lembrar que a transparência dói na alma. Ela não permite ocultar, esconder, mentir, expor fraquezas. O tempo transparente e imediato é límpido, plástico, direto. Mas o tesão vem na dobra, na saliência, na curva do corpo. No bordado desnecessário da ponta do paninho. No floreio do piscar dos olhos. No tchauzinho antes do ônibus sair. Desnecessidades.

Rito, mito, mistério, segredo, sigilo. Patuá pra atuar. Patuá pra aturar. Reencantamento do mundo a cada história inventada em jogo. Vida, parede de chapisco que (re)ali-s/za-mos. Não esqueça de emassar. Não esqueça de pintar. A letra é minha tinta. Meu tijolo. Minha farinha. Só sei borrar.

Eu quero expectar, esperar, experenciar, esperançar. Meu estilingue acerta longe quando tenho força e tempo pra catar coquinhos, para encontrar o galho certo de goiabeira, para amarrar a borracha de câmara de bicicleta, para esticar com toda a força de um menino de 11 anos e atirar minhas palavras pro alto. Não sei para onde miro, e se ao menos miro. Mas ao estilingar o texto que sai de mim, cheio das mesmas firulas que intestinam os meus contornos, eu me acerto. De acerto em acerto, sigo me desendireitando, torto que sou. Arqueado em preguiça de tudo que não é inútil.

Me demoro escolhendo as palavras. Imagino textos. Não preciso nem mesmo de blocos de papel. Penso escrevendo. O sorriso vem a cada ponto. A cada releitura. Toda escrita é carta pra si. Tem vezes que esqueço meu endereço e preciso sair de casa pra me encontrar. Conversar com o silêncio pra me ouvir. Hoje, um dia desses, colhi o refúgio a vida que escorria no ralo da pia.

eu só vou falar
na hora de falar
então eu escuto

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Jorge dos Santos Valpaços
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