Educação, complexidade
Recentemente, fiz um comentário em uma rede social, falando que sentia falta do debate sobre a valorização docente e do debate crítico acerca da educação. Um amigo queria que eu falasse um pouco mais sobre o assunto. Este texto compila minhas reflexões.
Há muitas questões, o debate é bem complexo. Mas deixo aqui alguns convites à reflexão.
Ao pensar na valorização docente, destaco que a imagem do profissional da educação é ainda construída em torno de dons, de uma espécie de atividade de caridade, e não de saberes (conhecimentos e práticas) alicerçados em pesquisas e técnicas próprias ao ensinar. E é preciso romper estas imagens, tão comuns em em representações midiáticas, seja em programas populares com “narrativas de superação” (espetaculização da miséria) quanto em filmes, muito famosos, que narram histórias de “professores salvadores” (normalmente vindos de fora da comunidade e transformando quase que magicamente turma e alunos “problemáticos”). Ambas representações ocultam os entraves estruturais da educação e projetam soluções individuais para problemas sistêmicos.
Mas falar de valorização é se ater à materialidade. O profissional da educação é muito mal remunerado no Brasil. Precisa aumentar muito sua carga de trabalho ou ter ocupações paralelas para viver com dignidade. Inexiste tempo para persistir em seus estudos, para se alimentar de cultura em suas distintas expressões. O esgotamento e o burnout, além do abandono da carreira e a cada vez menor busca pelas licenciaturas são índices disso. E, em um país na periferia do capitalismo com as incertezas abertas e aumento da inflação, ser educador é algo que não se projeta no horizonte dos jovens.
Debater educação de forma crítica e propositiva não é restringir a discussão às escolas. E mesmo nelas, toda comunidade escolar, do porteiro à diretora, passando por cuidadores e inspetoras, e se focando nos alunos, deve se inserir. A escola é uma instituição que cumpre papéis, mas suas fronteiras são porosas, permitindo negociações e ressignificações dos valores que circulam. Partir da comunidade é uma chave para reposicionar a educação (supra/meta/paraescolar).
Como os espaços e experiências educativas são dispersas na sociedade, e como temos distintas interfaces para acessá-las, cabe pautar, quando discutimos de forma séria a educação, temas como direito à informação, regulamentação da mídia, exclusão tecnológica. Estas questões são prementes e ganharam volume com o ensino remoto massificado nos últimos anos.
Ainda desdobrando as várias situações educativas, é importante pensar e trabalhar ativamente com espaços não-formais de educação, estabelecer reflexões sobre as pedagogias culturais (aprendemos vendo filmes, lendo quadrinhos, indo à praia ou a um baile, participando do racha pro bolo de aniversário da mãe de santo, etc) não como concorrentes, mas complementares a outras situações educativas.
Ocorre que o debater ou não debater, o pautar ou não pautar, também são expressões políticas. E desviar a atenção da educação para a pauta moral, ignorar os interesses empresariais do novo ensino médio, executar o populismo penal com a transformações de escolas em modelos militares (você vê algo cívico nelas?), reproduzir discursos excludentes e capacitistas às escolas e inserir produtores culturais negacionistas/revisionistas em canais públicos destinados à educação são alguns exemplos de ações planejadas que cumprem interesses alheios aos que se discute academicamente.
A educação inclusiva, e verdadeiramente cívica e crítica é muito diferente do que se vê avançando por aqui. Ataques a discussões sobre direitos reprodutivos, perseguição a educadores que expõem as agruras da ditadura, interditos ao debate sobre gênero e sexualidade não são casos isolados ou cortinas de fumaça.
Deste modo, um debate sistêmico e cauteloso se faz necessário para que haja uma transformação na educação brasileira. Um debate que não se preste a falsos dilemas como “isso que é ensinado não serve pra nada” ou “isso eu não aprendi na escola”. Todas as vezes que leio ou escuto estas falácias de desvio de meta para encarar os problemas da educação, revisito o que expus acima e fico tentado a perguntar se quem comentou tem conhecimento sobre a complexidade que é pensar na educação. Não o faço, mas tento dispersar em gotas, seja em meus contos, romances, jogos ou falas públicas o que levo às salas de aula.
Acredito que é preciso restituir a complexidade deste e de outros debates. A complexidade é tomada como impedimento para discussões e práticas, mas não deve ser. O nosso mundo é complexo, e quaisquer simplificações geram efeitos que podem ser usados a favor de certos atores. Por isso cabe a todos nós lidar com a complexidade. Com seriedade, mas também com cautela e ternura. Afinal, sempre estamos em diálogo e em jogo, e este jogo, quase sempre é pedagógico.