Difícil, professor

Jorge dos Santos Valpaços
3 min readOct 20, 2023

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Dois mil e vinte e três é o ano mais amargo na minha jornada docente. E olha que o distanciamento social fraturou minha saúde mental. Ocorre que os infortúnios da vida além de meu corpo, mas de mesmo sangue, se somaram em camadas espessas da lasanha pustulenta do magistério na educação básica na periferia do Rio de Janeiro.

Novo ensino médio, base nacional comum curricular, genocídio preto e pobre, fome.

O desalento eclipsa horizontes. Dias atrás, véspera do dia das crianças, começou a “operação” na Maré e no Complexo da Penha (Vila Cruzeiro + Alemão). Cinco horas da manhã — conforme a pedrada de Sant & LP Beatzz com feat do Costa Gold — mas a luz da favela não apagou. O tremor é meu ou da parede? As cápsulas tilintando no corredor.

Na mesma semana, uma outra guerra nos jornais. E o travesseiro, todo dia, testemunha o sal da lágrima fria. Aqui do lado, 8 em 10 pratos não sabem se vai ter feijão amanhã. Mães de alunos ficam na porta e pedem pra almoçar. Os filhos pedalam. Carregam produtos-comidas-desejos. Parte dos colegas oblitera amanhãs na reprovação pura e simples. Parte automatiza o processo, temente pelo fechamento de turmas. E eu, no segundo estômago da ruminação, encaro o vômito da ansiedade e vejo o futuro. Oráculo. Azedo. Fermentado.

A trilha sonora segue. Helicópteros alvejados. Clac, clac, clac, clac. Comércio fechado. Nem tem mais pipa, foguete, morteiro. Depois de um tempo, a gente deixa de escutar os tiros. Depois de um tempo, a gente deixa de estranhar a sala com 15 estudantes. Ou menos.

Mas o simples trajeto de ida e vinda de casa ao colégio me plantava no pesadelo lúcido, no realismo mágico que é sobreviver na América Latina.

Enquanto isso, o velho, pura dor, era o único são no tiroteio: urrava o grito que insistimos abafar. O velho, ansiava amanhã de silêncio. O velho, não entende meu mundo. O velho, meu medo. O velho, meu amanhã. Nada mais freudiano que uma tragédia grega. Azeite no corpo, azeite no bolinho de bacalhau. Mas eu posso antecipar o destino. Ao menos o meu. Decidi faltar ao natal.

O quarto bimestre é cheio de vazios na escola. Antes sentia pena dos colegas que desprenderam a sonhar. Hoje, os entendo. Ainda jogo no outro time de perdedores. Dói mais pra quem compreende a sutil e eficiente tecnologia da alienação.

A máquina de desestruturação social massacra todas as instâncias da existência favelada. O colégio, ensaio de futuro, é terraplanado e facilmente se torna espaço limiar, tomado de backrooms de afetos, neste manancial de ausências.

O olhar da aluna não me alcança. Não há culpa. Ainda que tenha me considerado um péssimo professor em vários momentos deste ano — tomo café com autossabotagem às terças e quintas — sei que são questões estruturais que criam a barreira intransponível entre nós. Ela vê através de mim. Presta atenção em tudo que digo pra não se conectar consigo mesma, tudo o que eu e MC Rüsen da Pedra do Sapo queremos.

O olhar perdido da jovem que não sabe se voltará ao colégio amanhã é onde eu me encontro. E enquanto ela e seus colegas faziam exercícios sobre direitos humanos — que ironia — me perdi olhando a janela. Entrei as grades que impedem meu salto todas as manhãs, vi a beleza de todos os tons de verde e terracota na mais bela rima visual entre amendoeiras e tijolo. Demorei-me dois katuns mesoamericanos na contemplação, que acabou quando vi nascerem buracos de projéteis na parede.

Talvez tenha descoberto outro eu neste ano. Um eu tranquilo, sem desespero. Um eu nem um pouco heroico. Um eu que rompe. Que não quer mais. Que desiste. Mais vinte e quatro vem, e quando a cortina se abre, o avatar é mais que personagem no ARG jogado na escola.

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Jorge dos Santos Valpaços
Jorge dos Santos Valpaços

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