Distâncias

Jorge dos Santos Valpaços
2 min readFeb 10, 2020

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Certos olhares machucam.

Não os olhares pontas de seta, fios de navalha. Tampouco os olhares que marretam, fraturam. Olhares que julgam, intimidam, são os que precisam da conexão para violentar. Este é o olhar da condenação, de quem quer te fulminar.

Há olhares que desviam, porém. Olhos escorregadios que fogem de alças de mira. Opostos aos que fuzilam, estes olhares fazem com que você os persiga num jogo de gato e rato onde quem foge domina a cena. Este é o olhar do desprezo, de quem sabe que você está lá, faz pouco caso e persiste.

Hoje (re)encontrei a dor dos olhares indiferentes. Olhos que não se escondem ou procuram. Visões perdidas, nubladas, cinzas, confusas. Olhares com cheiro de mofo, de desesperança, decrepitude. Se a indiferença fosse impulsionada pela repulsa, tudo bem. Se apontassem para a superação, para o seguir em frente, tudo bem. Contudo, cataratas invadem os olhares de esperança dos idosos de nós mesmos, vez por outra encontrados em outros.

Ouço o pai abreviar o futuro de si e pouco a pouco despersonalizar(se) no mundo. As pulsões parecem inexistir. Vida e morte são turvas, distantes para um olhar mergulhado na rotina. Ele é morno, somente. Finjo atenção no vazio para não enlouquecer. A distância nos une enquanto afasta. Eu, vestido de memórias, me dispo pra esquecer. Enquanto isto, ele sorri a cada descoberta do eterno agora que a vida se torna.

As palavras esperadas são poucas, pouquíssimas. O silêncio oprime o ambiente. Sinto-me asfixiado pelo eco. Seus olhos se perdem na janela. Uma fala me puxa à infância e a sobremesa está salgada: lágrimas.

Volto para casa. Encontro outro vazio. Aqui há palavras demais. Os ecos agora estão em minha mente. Penso que pode ter sido a última conversa. Tento sair da morbidez e vasculho sorrisos do encontro. Ensaio uma mudança de humor, mas a noite de domingo me coloca ao pior lugar: bem no centro de mim.

Na janela, outro olhar perdido. Amanhã é dia de encarar futuros possíveis de novas gerações. Sou eu, nesta esquina do dia, o algoz que me consumiu.

Certos olhares machucam.

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Jorge dos Santos Valpaços
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