Dezembrâncias

Jorge dos Santos Valpaços
2 min readDec 6, 2020

--

Dezembro sempre foi um mês especial para mim, enquanto professor. Despedidas emocionadas, formaturas, festas. Costumo lecionar para os primeiros anos (fundamental e médio) e sempre rolava aquele papo “ano que vem quero ter aulas contigo”.

Não era raro não rolar e, no início do ano seguinte os alunos vinham, carinhosos, manifestar suas saudades. Reciprocidade sabor castanha de caju torradinha. Mas voltemos aos dezembros.

Dezembros tocam memórias confusas. Mescla de férias escolares, percursos do ano letivo, (re)conhecimento de cada pessoa que estava comigo a construir saberes escolares. Jogo bom de jogar.

Havia leveza em dezembros. Guardadas as distâncias de exames seletivos, as aulas tornavam-se mas leves que de costume. Costumo observar e valorizar os as temporalidades distintas que o calendário escolar impõe ao grande rito que rola por ali.

Dezembro é mais que só mais uma dobra de esquina. Costumo avaliar a própria prática docente tomando os relatórios e observações que fiz e, ainda no fechamento do ano, pinto janelas que abriremos no ano seguinte.

Mas este dezembro se inicia diferente. Óbvio. Este ano foi distinto de tudo que já experimentei enquanto professor. É a primeira de mais de dez dezembrâncias que enxergo sob nuvens.

Após o café e o doce rosa, sou chão pós noite de chuva. Olho ao teto-céu e nada vejo além do nublado, mesmo destino que as vistas têm ao apontar amanhãs. Fecho os olhos.

A cabeça, agora concha, ecoa mares de incertezas. Amigos professores, em mares sociais, chegam em cardumes. O ano foi mais que difícil, foi fluido e arredio, irascível, insaciável.

Sob solo de tormenta, não se plantam referências. Nem mesmo o mistério, a dúvida, e o prazer de risco, ganham escoras para crescer. Professores vergam com o vento gelado, e o tremor não arrepia os pelos, mas derrubam. Um por um.

Ao dezembrar ignoro clichês de regresso, novas normalidades ou quaisquer fórmulas prontas ou motivacionais. Partilho atenção mouca a quem não vela a morte do ano letivo. Ladeio o destino junto às companhias de docência. Nos encontramos nos atravessamentos.

As salas, as partilhas, fazem falta. Não adianta falar sobre ensino remoto, pois esta faixa está disponível apenas no plano premium e a gente tá falando com quem não tem água pra lavar as mãos. O MC Gui de Ockham sempre lança a braba: “O papo é reto”.

Dezembro não terminou, pelo contrário, há de se arrastar. Curiosamente insistem em dizer, a cada ano, que o tempo passa rápido. Este ano, porém, muitos insistiram em afirmar que “ainda é 2020”, algo que nos faz pensar em como construímos nossas memórias.

Não quero esquecer de 2020, nem deste dezembro. Não quero que ele “passe logo” ou que “voltemos ao ritmo comum”. Revisito minha prática docente e repenso vários pilares. Mais complexidade, profundidade, cautela e carinho.

Vejamos o que doze meses aprontarão até a próxima dezembrância. Até lá, seguimos inventando outros amanhãs.

--

--

Jorge dos Santos Valpaços
Jorge dos Santos Valpaços

No responses yet