Auditorias de fachada: um comentário sobre o programa da crise educacional do estado do Rio de Janeiro
Algo obtuso está em curso na educação do estado do Rio de Janeiro. Na última semana foi noticiado que a secretaria de educação do estado faria auditorias em escolas com índices de reprovação elevados.
A priori, numa visão alheia ao que ocorre no cotidiano escolar, isto parece interessante. Mas não é bem assim.
Conforme exposto no periódico e confirmado pela secretaria, os colégios da zona norte da capital estariam com “números preocupantes”, já projetando alta taxa de reprovação. E o que ocorre na zona norte?
O fato de possuir áreas com baixíssimo IDH, clivagem social gritante e violência absurda (você pode chamar de extermínio de povo pobre, sobretudo negro) é apenas um detalhe. Sigamos com um exemplo.
Na última semana tive frequência de 40% de turmas em virtude de operações policiais no Complexo da Maré. Alunos entram em contato comigo recorrentemente falando que não tem como ir à escola, tanto da Maré quando do Adeus ou Alemão. Mas isso não aconteceu só semana passada.
É todo dia. Toda semana. Desde o início do ano.
Por certo este quadro se replica em Coelho Neto, Parada de Lucas, Cordovil, Nova Brasília, Colégio (este bairro, inclusive, talvez seja bem conhecido pelo secretário de educação em virtude da trajetória política de sua família), etc. Daí vem a questão: Qual a condição de um aluno ter um desempenho minimamente adequado com a política de insegurança pública operada pelo governo do estado?
Ok, vamos entrar nesta viela.
As unidades escolares estão sendo atacadas por pressões para a criação de um “plano de recuperação” que, após a “auditoria” pode gerar até mesmo na substituição da equipe pedagógica e da direção. Isto mesmo. Coerção que fere à Lei 7299/2016 que assegura a eleição de diretores e gestão autônoma das escolas.
A corda aperta. As coordenações pedagógicas pressionam os professores. Aí eu olho para o diário e vejo um aluno sem frequência. E sou eu que tenho de justificar o que está ocorrendo? A crise educacional sistêmica é um projeto. Um projeto de desmonte da já frágil educação pública.
A escola é tomada como algo alheio à sociedade. É óbvio que o desempenho em áreas periféricas é afetado. Mas não é a escola por si só e apenas ela que pode reverter o quadro. Auditorias, planos de ação e qualquer coisa que se faça são apenas vernizes e propaganda para eleições futuras se desassociadas de mudanças estruturais em torno não apenas da educação.
Mas é preciso falar um pouco mais sobre a educação, claro. E não de forma etérea. Vamos falar dos profissionais da educação. Da força de trabalho. Da materialidade.
Profissionais da educação do estado estão sem reposição salarial há 5 anos. Isso significa o achatamento do salário, do poder de compra. Isso significa também uma correria alucinada por aulas-extras (há uma sigla para isso chamada GLP). E, ao largo disso, nada de concursos novos, mesmo sabendo que o número de afastamentos, licenças e aposentadorias é tamanho na rede. O fruir inexiste, adquirir um livro para incrementar a prática, um curso livre, uma oficina pedagógica é algo que você precisa de muito a investir. Não há tempo, não há recursos, o corpo e a mente estão doentes, e não em vão.
A qualificação profissional é algo realmente importante, não nego. Professores são pesquisadores, porém, sem a incorporação salarial com enquadramentos, com pressões constantes e sem o atendimento de demandas básicas, a estafa mental torna-se endêmica. Não é raro conhecer histórias de burnout entre professores e chega a ser curiosa a representação social que ainda se tem em torno do professor: ora um dom, ora um serviço fácil, ora uma vocação, ora uma doutrinação ideológica, ora um segundo emprego.
Mais um detalhe: a superlotação.
Nos últimos anos houve um fechamento absurdo de turmas, gerando superlotação de salas, o que se tornou ainda mais grave com a crise econômica sistêmica, que faz com que alunos de escolas particulares migrassem ao ensino público. Há escolas que precisam “fazer salas” para abrigar os alunos. Biblioteca? Pra quê? Levanta-se uma parede e colocam-se mais crianças e jovens entre as quatro paredes. Quarenta, cinquenta, cada vez mais. O que importa é que todos precisam estar ali, confinados, em escolas por vezes distantes de seu entorno; grandes caixas quadradas, mas com muros que os abrigam por algum tempo dos tiroteios.
O que vemos ser operado não é uma busca pela melhoria da educação, mas um produtivismo tecnicista desumano que pressiona e aumenta os conflitos entre todos os profissionais de educação. É intencional a geração da paranoia docente. Não se buscam condições dignas de trabalho para os profissionais, condições dignas para a aprendizagem para os alunos. Jogam os dois como feras e chicoteia-se para que “tirem algo disso aí”.
Mas o professor modelo vai pra TV. A escola premiada é midiaticamente construída para provar que “é só se esforçar para dar certo”. O grosso do ensino público é considerado fracassado (!?) de propósito. E aí voltamos à pauta das auditorias.
Neste caos de fim de ano (ou do ano inteiro), chama atenção que a máscara progressista da gestão estadual na pasta da educação se fragmenta ao, no quarto bimestre, alardear os veículos de mídia com as auditorias sobre reprovações. Como profissional de educação eu sei bem que a avaliação não deve ser alocada apenas ao final de um processo e que esta estratégia pedagogicamente ignora a educação enquanto um processo. Na unidade escolar sabemos, projetamos, verificamos os problemas, mas eles não dependem exclusivamente de nós. Como lidar com o fato de alunos que abandonam a escola para trabalhar, pois os pais não conseguem complementar a renda para que eles sobrevivam?
Na economia “bolo de pote”, todos se tornam força de trabalho precarizada. E, na borda da borda do sistema, isso é mais grave. Achar que os alunos não estão envolvidos neste processo não é ingênuo. É perverso. Ou você não consegue ver as “trufas artesanais” brotando nos corredores escolares? Ah, desculpa, isso é empreender desde cedo… Vai vendo.
Sabe o Colégio Tamarindo?
Sabe por que ele se chama assim?
É porque ele é doce e azedo ao mesmo tempo.