Atravessamentos
Num outro vinte e cinco de outubro, o coração disparou. Não era o café. Amigos se interpuseram a uma ameaça que recebi por ter me oposto a uma conduta autoritária. A lembrança se fez de assombro.
Noutro balanço da gangorra do tempo, enquanto se faziam piadadas sobre o vexame na copa do mundo, a casa onde vivia foi invadida.
Um jovem, orgulhoso de sua ascendência inventada com esmero, bradava sobre a oposição entre a supremacia de um time e a degeneração do que foi eliminado.
Um ex-aluno. Operador de direito. Filho de um policial militar. Classe média. A escala pantone garante mais de 36 anos de (sobre)vida na região. Aquele tal 7 x 1, nunca foi engraçado para mim.
Indícios. A fibra da trama do que foi tecido por 21 anos deixou de ser pele. Carne. Ossos. Bastava tirar a roupa para ver o corpo nu, estéril, rijo, ascético. Sem desejo. Indesejável.
A voz segue, porém. Rouquidão. Peso. Decanta em livros, jogos, aulas, falas. O complicado é quando a coronhada machuca mais que a mensagem privada rede social. Quase cala. Quase.
Semana passada. Dia com aquele gostinho de último. Como outros. Já é passado, porém. Por isso aqui. Sempre.
A ferida nem deixaria o cabelo crescer direito. Quiçá as ideias. Quisera poder optar por rubros e roxos apenas no campo do prazer (e sim, a dor: há dor). A gente corta uns tufos (de si) e se cuida. Hidrate-se. Acerte a postura. Durma bem. Terapia. Respire fundo às quatro e vinte. Dobras e dobraduras de si.
Mas até que os sorrisos acontecem. Paradoxo de temperança em tempos de tormentas. Capa de revista, um amigo disse. A gente vai lançando os dados.
Raps e sambas ensinam a não ter vergonha de ser feliz e orgulho do que faz. Mas olha, dizer que é fácil na subida do morro é caô brabíssimo.
Outro sample se fez a manteiga no aipim cozido do café da tarde: “Tapa na cara pra mostrar que é que manda. Pois os cavalos corredores ainda estão na banca.”
Morte. Na infância. Na pandemia. Amigos saindo da cidade, do estado, do país. Coleciono ausências. Calafrio. O cheiro da lenha queimada no fogão vizinho. A fome é miasma que me conecta às conversas com minha mãe.
Aí a noite é soluço. A fuga é solução. E todo atalho é convite. Sorte que não estou só. Papo é reto: sorte.
Minha última personagem tava noutros ares. Fora do Rio, ria. Complicado. As coisas não são simples. Cabelos brancos ainda vivem. Quedas vão ocorrer. E é preciso comemorar os últimos títulos.
Amizades. Papos no fim de tarde, em eventos e esbarros. A gente segue, mas vai mudando, desviando. Coisas que ficam pra trás. Asas desconfortáveis cortadas. Pés no chão. Desistências. Seguimos.
Funes tinha toda a tristeza do mundo. Deixo o xará Borges noutra lágrima enquanto testemunho perdas de memórias em gotas frias da chuva.
Outras lembranças. Batidas junto à batida. Coqueteleira de afetos. Som de estampido. Cheiro de pólvora. Sabor de sangue. Contornos de humilhações.
Embalo um livro. Vejo meu corpo no saco preto. Entrego à cliente no evento em sobressalto. “Você tá bem?” Ela me leu antes de me ler.
Os horizontes estão aí, e os caminhos são disputados. Talvez se a gente começar seguindo uma estrela, podemos reinventar a esperança que nasce na margem do império.
Inclusive acho que tem um mito sobre isso. Mas tem gente com raiva de criança. Só pode ser. Querem matar seus futuros. Acho que uma galera não conhece aquele mito. Tempo de desesquecer. Ou colocar outras histórias pra jogo. Sei lá.
Acho que só bateu. O sinal do fim do expediente. Daí a deriva.
“Então você é mesmo professor? A gente tem de ficar de olho. Sabe como é, né?” Preferia a coronhada. Talvez.
Muitas coisas só podem ser ditas com palavras bordadas. E nem acho que muitas precisam ser faladas. Vale o registro, pois nem tudo pode ser expresso. Vale ver onde, quem, quando e onde. Porque acordar amanhã pode ser privilégio.